- Valor Econômico
Temer está muito ferido, mas não cairá no grito
O pulsar das ruas é algo sistêmico, não existe uma vanguarda. Grandes explosões populares tanto no Brasil quanto no exterior se intensificaram e ganharam dimensão política decisiva a partir de uma confusão aqui, outra acolá, que vão formando o leito do rio que tudo arrasta.
É possível que a bastante coreografada campanha das "Diretas Já" em 1984 não tivesse ocorrido se multidões de desempregados não estivessem saqueando supermercados no Rio de Janeiro e em São Paulo desde o ano anterior, e se turbas de flagelados não promovessem distúrbios no interior do Nordeste, que passava então por uma de suas mais agudas secas.
A pancadaria de anteontem em Brasília tem vasos comunicantes com os atos de junho de 2013 e acontece menos de um mês depois de atos por uma greve geral onde, em Goiânia, por muito pouco um manifestante não morreu. Enquanto ministérios ardiam em Brasília, tentavam invadir a Assembleia Legislativa no Rio. Desde domingo uma truculenta intervenção da Prefeitura de São Paulo na área da Cracolândia provoca protestos contra o prefeito João Doria e o governador de São Paulo. É óbvio que cada episódio tem as suas próprias razões para ter acontecido, mas é evidente que a visão de conjunto mostra um ambiente de tensão, uma atmosfera em que o palavrão está na ponta da língua, a mão está prestes a jogar uma pedra ou uma bomba, o pensamento contrário é visto como agressão pessoal.
Não há fio condutor, e sem fio condutor, o clima ruim se encerra em si mesmo, não gera consequências políticas maiores. Sem o decreto presidencial de convocação das Forças Armadas, editado anteontem e revogado ontem, o ato de Brasília poderia ser caracterizado como um momento doidivanas de oposicionistas que pensam em derrubar o presidente incendiando prédios públicos. A desastrosa ação presidencial mudou este curso. "Temer justificou moralmente uma agressão à democracia, ao chamar o Exército e trocar o sentido do que aconteceu em Brasília", observou o cientista político Fernando Schuler, professor da Insper, instituição de ensino superior.
O vai e vem na ação de Temer em relação à questão evidencia por si só a extrema fragilidade de sua Presidência. O Planalto procurou envolver o presidente da Câmara na gênese do pedido de convocação das Forças Armadas. Rodrigo Maia, de quem ninguém pode levantar suspeitas de deslealdade em relação ao Planalto, negou e comprovou não ter pedido o Exército nas ruas. Na manhã seguinte o presidente voltou atrás.
Temer pode ter tido sorte. A continuação da garantia da lei e da ordem em situação conflitiva poderia colocá-lo na trajetória de Fernando De la Rúa. Na véspera de fugir de helicóptero da Casa Rosada, o presidente argentino em 2001 decretou estado de sítio e dezenas de pessoas morreram em conflitos de rua.
Marchas e contramarchas do poder central em torno de medidas excepcionais de salvaguarda, entretanto, são um péssimo preditor, sobretudo quando os sinais de Brasília mostram que o mergulho no abismo está apenas se iniciando. O presidente da República está muito ferido, mas não cairá no grito, há um rito constitucional a ser cumprido e o Tribunal Superior Eleitoral, palco primeiro da solução definitiva, tem a sua liturgia, avessa às soluções expressas. Do mesmo modo seguirá seu próprio ritmo o inquérito contra o presidente no Supremo e um eventual pedido de impeachment. Na avaliação de Schuler, o Brasil pode atravessar boa parte do inverno nesta discussão.
Caixa dois
No balaio do pacote que pode acompanhar um grande acordo nacional em torno da eleição indireta, em que se envolve o Supremo Tribunal Federal e se delimita a crise onde está, para estancar a sangria, conviria uma discussão mais aprofundada sobre a relativização do caixa dois.
Tenta-se fazer crer que o caixa dois é um crime menor do que o do recebimento de propina. À primeira vista, parece sensato. Afinal, pode-se argumentar que do ponto de vista moral um político se torna mais ladrão quando recebe dinheiro para locupletar-se pessoalmente, do que outro que usa o produto de um roubo para "engraxar" prefeituras e comprar votos, de maneira geral.
Para tentar barrar o caixa dois, há dois tipos de discussão em curso em Brasília, ambas com seus obstáculos. Uma é a de se estabelecer um acordo no estilo do sermão do padre Cícero aos jagunços na sedição de Juazeiro, 1914: "Quem matou, não mate mais; quem roubou, não roube mais". Os envolvidos nos projetos de irrigação da Odebrecht, OAS e outras teriam seus pecados esquecidos, desde que se regenerassem para o futuro, por meio de uma reforma política purificadora, em que um generoso fundo público pagaria a conta eleitoral. A outra vertente é a de se estabelecer uma espécie de acordo de leniência partidária, em que os envolvidos arcariam com algum grau de inelegibilidade, em troca de assunção de culpa. Os políticos esqueceriam o futuro, a Justiça esqueceria o passado.
O que é difícil conceber é como o organismo irá sobreviver sem o pulmão a transformar o sangue venoso em arterial. Um deputado federal em São Paulo precisa ser votado em mais de cem municípios, o que só é possível com uma rede de prefeitos e vereadores a seu serviço, com um sistema de "dobradinhas" com candidatos a deputado estadual.
O processo necessariamente lento, doloroso, de queda presidencial conspira contra o acordo. Legislação eleitoral para vigorar em 2018 precisa ser aprovada em setembro deste ano, e talvez não haja tempo hábil para tal.
Brasília
A política no Distrito Federal não é um caso isolado no cenário brasileiro e tampouco um microcosmo. É algo entre uma paródia e uma caricatura do país. Dois ex-governadores e um ex-vice-governador foram encarcerados esta semana, em uma das operações policiais que se sucedem. Brasília tornou-se politicamente autônoma em 1988 e desde então todos os governadores que elegeu, com exceção de Cristovam Buarque, petista nos anos 90, hoje senador pelo PPS, foram parar na cadeia ou se tornaram inelegíveis pela lei da ficha limpa.
Para o sobrevivente Cristovam, a explicação está em um binômio: classe política sem qualquer tradição e dinheiro demais circulando. Somente o Distrito Federal possui uma máquina de fazer dinheiro nas mãos, a Terracap, uma imobiliária estatal, que alavanca qualquer projeto, como uma nação petroleira nos momentos de alta da commodity.
Nenhum comentário:
Postar um comentário