- Valor Econômico
É hora de colocar cada Poder e seus apêndices dentro das 'caixinhas'
Para um jejuno em direito constitucional como eu, viver a tumultuada gestação da Constituição de 1988 foi uma experiência inesquecível.
Primeiro, foi assistir à magnífica negação das leis da termodinâmica: do caos emergiu uma ordem! Segundo, foi aprender que, em geral, finíssimos argumentos jurídicos costumam esconder armadilhas para os incautos que não conhecem o poder infinito de uma vírgula. Terceiro, que a "ordem" construída embutia, afinal, uma lógica fechada sobre si mesma para a consecução do objetivo desejado: a construção de um "Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias" (preâmbulo da Constituição de 1988).
O Artigo 1º da Constituição determina que: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: 1) a soberania; 2) a cidadania; 3) a dignidade da pessoa humana; 4) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
Como se organizará a República está expresso no Artigo 2º: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário", que devem atingir "Artigo 3º...os objetivos da República Federativa do Brasil: 1) construir uma sociedade livre, justa e solidária; 2) garantir o desenvolvimento nacional; 3) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; 4) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".
Todos os Poderes têm controles internos e externos que respeitam a sua independência e exigem que respeitem a harmonia com os outros Poderes, ou seja, há limites para todos. O controle externo do Legislativo (Artigo 71) "será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União".
A Constituição fortaleceu, também, o Ministério Público (Artigo 127), que "é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".
Em resumo, para quem é ignorante do direito constitucional, mas que pelas virtudes do voto popular teve o privilégio de assistir ao processo de sua criação, a Constituição sugere uma República com plena liberdade individual, na qual se mitiguem as diferenças de qualquer natureza e onde ninguém e nenhuma instituição está acima de controle.
Todo esse sistema construído para o bom funcionamento da República é garantido pelo Supremo Tribunal Federal, ao qual compete (Artigo 102) "precipuamente, a guarda da Constituição". Mas mesmo ele tem limites que estão numa Constituição minuciosa de 250 artigos, que regula até o transplante de órgãos! Isso rejeita a ideia que o STF possa fazer um "aggiornamento" de seus dispositivos, substituindo-se, assim, ao Poder Legislativo. "Todo poder - parágrafo único do Artigo 1º - emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição."
O leitor (se chegou até aqui) deve estar se perguntando por que essa arenga mal ajeitada de quem está longe de conhecer as filigranas do direito constitucional? Porque é evidente que a Constituição não está funcionando e que os Poderes e seus apêndices (Legislativo e Tribunal de Contas da União, Executivo e as agências reguladoras e Judiciário e Ministério Público) estão conflagrados desde que a leniência e a perda de protagonismo do Executivo assistiu, pacificamente, à extravagante "judicialização da política" e a sua irmã siamesa, a "politização da justiça".
No nível atual, elas tornaram o Brasil inadministrável. É hora, pois, de voltar ao "livrinho" e colocar cada Poder e seus complementos dentro de suas "caixinhas" e coibir toda e qualquer invasão ou abuso de poder. É hora de submetê-los, todos, às necessárias restrições corretivas produzidas pelo Legislativo, sob o controle do Supremo Tribunal Federal.
É diante desse quadro desolador que se deve medir o que foi conseguido pelo presidente Temer nos nove meses de seu governo. Não é preciso repisar os dados conhecidos (saída da recessão, redução da taxa de inflação, reforma trabalhista). Basta considerar que na última sondagem feita pela insuspeita Fundação Getulio Vargas, em parceria com o sério instituto alemão IFO, o clima econômico atual do Brasil foi avaliado como o melhor dos últimos cinco anos!
Temer empenhou todo seu esforço na reforma da Previdência, mas a programada "confusão geral" impediu sua aprovação no Congresso. Não desanimou, voltou a insistir numa lista de 15 medidas (11 das quais já transitam no Congresso). Foram recebidas como se estivesse tentado pautar o Congresso e agressivamente repelidas. Diante de um quadro selvagem, decretou uma intervenção na segurança do Rio de Janeiro. Os virtuais candidatos à Presidência consideraram-na uma "jogada" política. Positivamente, o Brasil não é mesmo administrável!
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Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento.
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