segunda-feira, 12 de março de 2018

1968, o ano dos loucos desejos que nunca encontrou fim

Período ecoa nos dias de hoje e parece resistir a qualquer tentativa de classificação

Gilles Lapouge | O Estado de S.Paulo / Aliás

Em janeiro de 1968, um ministro do General de Gaulle visitou a Faculdade de Nanterre. Ele fala. Um estudante o interrompe. “Você diz bobagens. Você não fala sobre os problemas sexuais dos jovens.” O ministro responde: “Se você está muito quente, vá se refrescar na piscina”. O aluno ri: “Se eu quiser receber uma estudante, antes preciso tirar a cama do meu quarto. É grotesco.” O aluno é um desconhecido. Não o será por muito tempo.

Quatro meses depois, Paris é uma cidade louca. Uma cidade desconhecida tomou seu lugar. Barricadas, música, lutas, desfiles e a alegria dos corpos de moças e rapazes. As noites são belas como os dias. Paris é uma festa. Em todos os lugares, como um elfo, está o insolente estudante de Nanterre, Daniel Cohn-Bendit. A polícia se descabela. Como ele é meio francês, meio alemão, é expulso para a Alemanha. Mas é um demônio, não se preocupa com fronteiras. E olá, está ele de volta a Paris! Como um tiro pela culatra, um retorno de alegria.

No dia 3 de maio, estudantes tomam a venerável Sorbonne, no coração de Paris. Primeiras barricadas. Pessoas feridas. As noites são calorosas. A desordem vai às mil maravilhas. No dia 13 de maio, um milhão de manifestantes. Eles desafiam o intimidante general Charles de Gaulle: “Charlot, basta!” A Sorbonne se proclama “comuna livre”. As figuras do passado são mescladas com o caso. Em meio à fumaça do gás lacrimogêneo, Marx, Bakunin, Lenin, Mao Tsé-tung, Ho Chi Minh, Castro, Guevara e até mesmo o General de Gaulle, o de 1939, aquele mesmo que tolamente continuou na guerra após a derrota do exército francês. Qual a alquimia que fez uma pequena faísca (as garotas nos quartos dos rapazes) produzir esse fogo gigantesco? Nem Maquiavel a teria previsto.

Cinquenta anos depois, os historiadores, como Maquiavel, também “não fazem a menor ideia”. O belo mês de maio escorrega pelas suas mãos. Eles não sabem o que fazer. Como rotular? “É um mistério”, dizem eles. O melhor pensador da direita, Raymond Aron, escreveu: La Révolution Introuvable (A Revolução Esquiva). Não pretendo levantar esse mistério. Em vez disso, coloque esse mistério em uma perspectiva dupla, geográfica e histórica. No espaço e no tempo.

Maio de 68 é considerado francês. Ele havia sido precedido por sinais vindos de outros lugares. Em 1962, a pílula na França foi legalizada. As garotas conquistam uma liberdade. O baby boom do pós-guerra chega ao fim. A libertação das colônias também. Descobrimos, na Indochina, na Argélia, o lado tenebroso das aventuras coloniais e a existência das minorias. A Guerra do Vietnã humilhou os EUA, criou soldados loucos, abalou valores como família, trabalho, consumo.

A contracultura era como fogo selvagem. Em São Francisco, Los Angeles, ela assola. Defendemos um retorno à natureza. A autenticidade. O amor estava nos lábios de todos. A América se tornava um vasto laboratório de LSD, de paraísos artificiais. A pirâmide da sociedade e seus líderes torpes e tirânicos foram abalados. Escrevemos poemas por todos os cantos. Tivemos nostalgia pelos ameríndios e pela sabedoria do Oriente. Em várias partes do globo, pode-se ver implicitamente e não só na França, desde 1965, as efígies trêmulas do que virá a se tornar Paris e a França em maio de 1968. Mas os EUA não são os únicos a tê-lo precedido ou seguido. Itália, Alemanha, Checoslováquia, México. Cada um deles teve seu maio de 68.

O período é visto como uma paixão francesa, até mesmo parisiense. Isso não está correto. Maio de 1968 foi declinado em todos os idiomas. A França só captou esse frenesi em voo, um frenesi que passou e veio de outro lugar. Mas ela lhe assegurou a dramaturgia. As trinta noites iluminadas de Paris são apenas a encenação de uma convulsão sem imagens ou fronteiras. E como a França tem uma longa prática em revoluções, a Sorbonne foi também uma antologia histórica. Os cartazes e slogans que cobriam as paredes em serigrafias (muito caras hoje em dia, para colecionadores) dizem o contrário, no entanto: “Do passado, faremos uma tábula rasa” e “Nada será como antes”.

Ilusões: os exaltados do Quartier Latin sonhavam com uma sociedade sem antecedentes, de um passado abolido ou restaurado à sua virgindade. Bobagem. O passado nunca morre. Lenin herdou dos czares e de Gaulle sabia que estava continuando o romance dos Reis da França e dos revolucionários da Bastilha. O desdobramento das jornadas o atesta: inventado por acaso por estudantes burgueses e cultos, o maio de 1968 refez, em tons menores, comoventes ou sem importância, as grandes cenas da história que tinham aprendido nesta universidade que eles faziam de conta não amar. Ao acaso, as ruas foram informadas por fragmentos da Revolução Francesa de julho de 1789, a “Palma de Ouro” de todas as Revoluções, e retomadas por Moscou ou Petersburgo em 1905 e 1917. Comemoramos as barricadas parisienses de 1848 sob o sobrinho do Grande Napoleão, ou ainda a Comuna de Paris, que os trabalhadores fizeram viver e viram morrer em alguns meses, em 1871, após a derrota dos exércitos franceses diante dos prussianos. Maio de 1968 também foi uma celebração de epopeias revolucionárias estrangeiras, incluindo as que, levadas ao auge por um ou outro grupo da Sorbonne, mais tarde mostraram seus rostos hediondos, como Cuba ou a China de Mao Tsé-tung. Celebrando também os movimentos sociais ultrapassados, que inspiraram obscuramente os bons confrontos com os quais os estudantes estavam tão orgulhosos? Mistério! “Meu lindo mistério!”

É por isso que podemos dizer que o mês de maio de 1968 começa antes de maio de 1968. E continuará após 31 de maio de 1968 e o reaparecimento de Gaulle, com os vastos movimentos sociais que afetaram as grandes empresas, os grandes sindicatos, mas também artesãos, pescadores, alguns comerciantes, artistas, pintores, o cinema, a ópera, uma parte da Igreja, professores.

Podemos acrescentar que 1968 continua a viver, nas profundezas de nossas sociedades, nos conceitos que formamos da história, do Bom Deus, do ser, do nada, da liberdade, da felicidade? Dizem que o jovem presidente francês, Emmanuel Macron, sempre ansioso pela “modernidade”, acariciou a ideia de comemorar oficialmente o 50.º aniversário de maio de 1968. Então, um conselheiro mais corajoso que os outros teria dito a ele que maio de 1968 era seu exato antônimo: Macron quer uma sociedade vertical que obedece a uma única vontade, a do presidente (“Eu serei um presidente dominador”, ele disse). Ele acredita nas sociedades frias, sábias, racionais, ordenadas, hierarquizadas, financeiras, certamente não as sociedades em movimento, fluidas e constantemente reinventadas com as quais os estudantes de 1968 sonharam. Macron tem como bússola o “princípio da realidade”, os filhos de maio de 1968, a poesia. Reconheçamos de passagem que uma sociedade edificada pelos estudantes de 1968 não teria uma expectativa de vida muito grande. A sociedade tradicional, sem imaginação, modernizada por Macron, tem chances bem maiores de sobrevivência.

Não podemos evocar maio de 68 sem recordar da alegria, do riso, da malícia e do lirismo que acompanharam essas horas tórridas. Pessoas conversavam sem se conhecerem, moravam umas nas casas das outras, se amaram sem jamais se terem visto, não sabiam quem eram. Admita-se que dificilmente vemos, nos espetáculos propostos em 2018, o traço dos “desejos loucos” dos quais os jovens de 1968 consideravam possuir o segredo.

Anos depois, alguns dos slogans mais obsessivos nos muros de Paris deixaram sua marca no comportamento dos jovens. “Assuma seus desejos como se fossem realidade”, “Gozar sem limitações” e “É proibido proibir”. Que falta de sorte: a partir dos anos 1970, uma hidra obscureceu sob sua sombra todas as figuras do desejo: a Aids tornou obsoletos os slogans de maio de 1968. Os obstáculos ainda estão lá. As realidades tomaram o lugar dos desejos. / Tradução de Claudia Bozzo

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