- O Globo
Ortega segue no poder através de sucessivos mandatos contestados pela oposição e sustentados pelo que existe de mais reacionário e corrupto na elite nicaraguense
Entre o final dos anos 1950 e o início dos 1960, nós estávamos convencidos de que o Brasil era, sim, o país do futuro. Não apenas como uma potência social e econômica, mas também como uma organização política original e uma cultura que mudaria o rumo da humanidade, sobretudo ocidental. Já disse mais de uma vez, por exemplo, que o programa de nosso Cinema Novo era muito simples e tinha somente três pequenos pontos objetivos: reinventar o cinema, transformar a sociedade brasileira e mudar a história da humanidade. Nós tínhamos certeza de que o Brasil, e nossa geração dentro dele, estava destinado a isso.
A primeira decepção, o primeiro impasse para o futuro desse projeto de futuro, acabou sendo o golpe militar de 1964. Descobrimos, da noite para o dia, que não eram bem as câmeras e os intérpretes diante delas que mudavam o mundo. No nosso caso específico, eram os tanques que estavam prestando esse serviço não solicitado. Com paciência e certa perseverança, descobriríamos mais tarde que, apesar de tudo, embora não mudassem o mundo, nossos filmes e os filmes que amávamos podiam fazer os espectadores entendê-lo melhor. Se não tínhamos poder para mudá-lo, podíamos ao menos descobrir e revelar o estado do mundo.
Durante cerca de 21 anos (a duração da ditadura), os melhores e mais consequentes artistas brasileiros viveram dessa ilusão sagrada, que justificava nossas obras e mesmo nossas vidas. A determinação da censura contra o que fazíamos, mais do que um problema, era uma vitória da nossa consciência, a garantia de que era esse mesmo o rumo certo, a ação correta que podíamos praticar num mundo autoritário e perigoso, como aquele em que estávamos vivendo.
Tratava-se de um momento em que o mundo, se não se transformava tão radicalmente quanto havíamos sonhado, ao menos tomava consciência universal do que não podia mais ser, do que não podia mais existir. Como estávamos todos unidos contra um reconhecido inimigo comum, cuidávamos de não ferir o aliado que não professava exatamente o nosso credo, fosse ele qual fosse. Por isso mesmo, relegamos ao esquecimento ou, no mínimo, a um segundo plano, as reivindicações solitárias de representantes dessas minorias revolucionárias. O fundamental era apenas a luta contra a ditadura.
Uma delas, a do movimento sandinista da Nicarágua, libertou seu país de um regime odiosamente ditatorial, com anos de luta armada e não menos tempo de pregação democrática, sempre à esquerda. Os sandinistas acabaram servindo de espelho e estímulo para a América Latina, sobretudo depois que derrubaram o ditador Anastasio Somoza, em 1979.
Daniel Ortega, o principal líder da Frente Sandinista de Libertação Nacional, que se tornaria presidente da Nicarágua com a vitória dos rebeldes, assumiu o governo com o discurso mais moderno e unitário da esquerda latino-americana, aceito por todas as tendências do continente. Um programa novo para a América Latina socialista, livre e democrática. Depois de mais de uma década de ditadura militar no Brasil, do desmantelamento de forças revolucionárias armadas aqui ou em outros países do continente, do início de uma discussão menos romântica sobre o futuro de Cuba, os sandinistas iluminavam o coração e o horizonte político dos que desejavam mudar o destino da América Latina, através de uma nova democracia social planejada e executada aqui mesmo, por nossos povos e através de nossas culturas.
Quase 40 anos depois desses acontecimentos, Daniel Ortega segue no poder sequestrado por ele e seus aliados, através de sucessivos mandatos presidenciais contestados pela oposição e sustentados pelo que existe de mais reacionário e corrupto na elite nicaraguense. Em resposta à ousadia da contestação, Ortega manda prender, torturar e matar (351 mortos, em três meses de levante popular). Um ditador assassino que tem sido criticado com veemência por líderes latino-americanos, como José Mujica, do Uruguai, além de partidos de esquerda, como o Socialista, no Chile, ou o PSOL, no Brasil. O PT, que tinha a obrigação de se opor a qualquer ditadura em nosso continente, é uma das poucas agremiações de esquerda que apoia o ditador, sob o pretexto de que o levante nacional iniciado pelos estudantes é “uma contraofensiva neoliberal”.
Além da tragédia nicaraguense em si mesma, temos que estar atentos ao que está acontecendo na América Central, como em outros países latino-americanos, para não cairmos na facilidade de defender o arbítrio em nome de nossas suposições conspiratórias sobre o papel do imperialismo internacional nisso tudo. Certos eventuais inimigos do demônio podem ser piores que o próprio demônio.
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Cacá Diegues é cineasta
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