- Valor Econômico
Sem o colunista, ficou mais difícil entender Brasília
Raymundinho, deu Bolsonaro, como você previu desde o início desta campanha, a oitava que você cobriu desde a redemocratização do país. Não foi um passeio. O ex-capitão venceu com 55,13% dos votos válidos, 10,8 milhões a mais que Fernando Haddad (PT). Este cresceu de forma impressionante nas últimas duas semanas antes da votação do 2º turno. O arranque foi motivado não propriamente por méritos da estratégia eleitoral petista, mas por erros de Bolsonaro e seus aliados.
Ray, como conhecedor profundo das mumunhas de Brasília, você foi um dos poucos analistas que não subestimaram a ascensão do deputado do PSL. Também pudera: você, seu danado, acompanhava a cena política nacional desde os tempos em que não se pronunciava a palavra "democracia" no Planalto Central. A eleição de domingo quebrou paradigmas. Acreditávamos, por exemplo, que brasileiros não elegem os extremos do espetro político, que temos inarredável tendência a votar no centro, que não gostamos de candidatos radicais.
Mea culpa, Ray: este colunista dizia por aí, desde o início do ano, quando o nome Bolsonaro pululava nas redes sociais, que a preferência por ele derreteria assim que os nomes dos demais contendores se tornassem conhecidos. Ora, o presidente eleito faz campanha nas redes desde 2015. E a sua bandeira foi uma só: o antipetismo. Se tivesse prestado atenção a esse detalhe, este seu colega não teria errado.
Raymundo, você viu, o povo está tão bravo, mas tão bravo com o PT que a ex-presidente Dilma Rousseff não conseguiu se eleger senadora em Minas Gerais depois de liderar as pesquisas por toda a campanha - será que teria tido melhor sorte no Rio Grande do Sul, onde fez sua carreira política? Um dos problemas do PT foi justamente não aceitar a realidade como ela é.
Dilma traiu a memória de Lula ao mudar a política econômica que ele consagrou em seu dois mandatos (2003-2010) e que foi crucial para levar a sucessora, que até então não havia se submetido ao sufrágio popular, ao poder. Ray, você se lembra, inclusive porque tinha muitos admiradores no mercado financeiro, que nunca uma crise foi tão anunciada como esta que ainda assola o Brasil. Foram três anos de recessão, mais dois de baixíssimo crescimento, o PIB encolheu 7%, o desemprego chegou a 14 milhões de pessoas, firmas quebraram, Estados entraram em ruína, a União não sai mais do vermelho.
Raymundinho, perdemos meia década! Uma crise, ao contrário de tantas que a nação enfrentara, forjada aqui mesmo pela então presidente e seus assessores, todos críticos das políticas que tornaram Lula o maior líder popular de nossa história. Dá para entender? Certa feita, você citou a célebre frase do Barão de Itararé, sempre usada pelo ex-senador Marco Maciel, para definir os resultados da gestão Dilma: "As consequências vêm depois".
Ah, Ray, que saudade dolorida de seus textos memoráveis decifrando enigmas da Capital Federal. Foi inspirado em seus ensinamentos e exegeses que este repórter cunhou a expressão: "Brasília não conhece São Paulo e São Paulo não conhece Brasília". No raciocínio, São Paulo pode ser substituído por Brasil, embora, registre-se, o Brasil, em muitos de seus aspectos, esteja bem distante do Estado mais rico do país.
O eleitor brasileiro é tudo, menos alheio ao que acontece ao seu redor. Ninguém tem condições de enganar todo o tempo 147 milhões de almas com o direito sagrado de votar. O governo Dilma desconstruiu a gestão de Lula. Isso explica por que, embora avassalador, o antipetismo tenha humilhado Dilma, mas não consiga destruir o lulismo, afinal, mesmo preso em Curitiba desde abril, Lula chegou a ter 40% das intenções de voto.
Sobrevivem na memória dos nordestinos duas conquistas atribuídas a Lula: o Bolsa Família e a forte correção dos benefícios previdenciários, cujo piso está atrelado ao valor do salário mínimo. É por isso que, no Nordeste, Haddad venceu.
Olha, Ray, você apontou, antes do início da campanha, um erro capital do discurso de Haddad, quando ele ainda não era o candidato oficial: a retórica estatizante. "Cris, o Haddad esqueceu que ele é candidato do Lula e não da Dilma", disse você, um observador implacável. Lula esticou a corda da proibição de sua candidatura até onde pôde para manter o PT e Haddad no noticiário, e isso deu 20% ao candidato na largada. O restante dependeria dele.
Bolsonaro tinha um eleitorado que, pela trajetória do deputado, se identificava com suas posições sobre soldos dos militares, violência, comportamento. Principalmente por causa da explosão de violência, ele teve forte impulso na preferência, mas com um teto que não o tornava competitivo. A esperteza foi ele se apresentar como o antipetista em todos os temas, especialmente, os econômicos.
Colunista do Valor desde 2005, leitura obrigatória de quem precisa entender o Brasil, lido com atenção pelo mercado financeiro - onde era chamado também de Raymundinho -, você mostrou que, sem autocrítica dos erros cometidos pelo PT e sem inflexão no discurso econômico, Haddad não atrairia votos da classe média - e do pessoal da periferia das grandes cidades, muito afetado pela tragédia dilmista. O partido nunca aprendeu uma lição sua, Ray: Lula não foi eleito apenas pelo voto petista. Acredita que, na última semana, quando muita gente que nunca votou na esquerda aderiu ao voto no PT, em meio a um ambiente de "batalha da civilização contra a barbárie", Haddad declarou, no Twitter, coisas superadas por Lula desde a "Carta aos Brasileiros"? A saber:
1. "O tal mercado tá nervoso, a Bolsa até caiu. Porque especulam com patrimônio público. E sabem que não vamos vender o pré-sal nem a Amazônia nem a base de Alcântara";
2. "Bolsonaro tem os bancos com ele, o governo Temer (...) Quem quer roubar nosso petróleo está com ele. Não tenho milionário ao meu lado. Tenho o PT, o povo, e alguns bravos como Chico Buarque, Mano Brown e o Caetano [Veloso]...";
3. "Meu adversário falou que vai manter a equipe econômica do Temer. Nós não. A equipe do Temer não pensa em geração de emprego, só pensa em lucro pra banqueiro. Precisamos resgatar aquele tempo em que gerávamos 1,5 milhão, às vezes até 2 milhões de postos de trabalho por ano".
Se era para falar isso, teria sido melhor lançar Dilma, não? O partido, pelo menos, teria ficado com suas convicções...
Raymundinho, sem você por aqui, será muito mais difícil entender o que está acontecendo, antecipar o que virá, desvelar o que parece mas não é e vice-versa, interpretar o ardil dos políticos. Você nos ensinou que não se escreve sobre Brasília com o fígado nem com preconceitos. Os jovens repórteres de política seguem sua fortuna - estavam todos em sua despedida. Foi emocionante.
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