- O Globo
Todo projeto social com fins bem marcados e certezas plenas é omelete e, como tal, exige o ‘sacrifício’ de muitos ovos
Isaiah Berlin (1909-1997), um dos mais lúcidos e originais pensadores do nosso tempo, usa essa figura dos ovos que quebramos quando queremos fazer uma omelete. Essa comida que seria maior, melhor ou mais magnificente do que seus humildes componentes —um pobre ovo frito!
Uma omelete é como uma poesia de um Manuel Bandeira ou de um Fernando Pessoa, essas poderosas máquinas de combinar palavras para conduzir o coração à indagação e ao arrebatamento. Na linguagem comum, as palavras nos servem, mas, estruturadas pelo poeta, elas nos enternecem e englobam, tal como ocorre quando comemos uma deliciosa omelete.
Quem já quebrou um ovo sabe que tal gesto — como, aliás, tudo que é humano — requer um mínimo de determinação e firmeza. Eu não sou um bom quebrador de ovos. Não porque me falte coragem, mas porque a alma comparativa do antropólogo social que tenho dentro de mim me obriga a duvidar das omeletes perfeitas. Todo projeto social com finalidades bem marcadas e certezas plenas — da Proclamação da República ao carnaval (sem esquecer o Holocausto, a Revolução Francesa e a Russa) — é omelete e, como tal, exige o “sacrifício” de muitos ovos.
Conforme aprendi com Isaiah Berlin, quanto mais existe certeza nos projetos — mesmo quando eles são insanos, como propostas de solução final para todos os males que nos afligem, a fome, as doenças, o desemprego causado pela corrupção como meio de controle político —mais se precisa de ovos. E, como diz Berlin, mais ilusória se torna a omelete.
Os fins e os meios nem sempre combinam e, como diz Berlin, são contraditórios. Muita liberdade promove abuso e opressão; muita igualdade faz como os lobos, que comem as ovelhas; muita escravidão e desigualdade agenciam tolerância com injustiças e, pior que isso, com uma Justiça seletiva e calculista —a qual tem sempre um olho aberto para salvar certos ovos e quebrar apenas os mais fracos ou os que seriam dos nossos inimigos, embora se saiba que não há omeletes sem ovos!
Ele deixou a zona eleitoral onde quebrou o ovo a que tinha direito. Encontrou um amigo que lhe diz um tanto aliviado: finalmente, terminou... Agora é ver o resultado. A sorte está lançada, como diria Júlio César (o amigo é professor de História Antiga). Ele replicou: “Nada disso!” Agora, vamos à boa ou má omelete. Mas —disse o meu amigo com ênfase —que deve ser produzida pensando em todos...
Os ovos são quebrados, e a omelete jamais sai como aquela feita por mamães. Nada é perfeito, e pensar que se pode chegar à perfeição é como botar um chifre na cabeça de um cavalo. Cada solução, como cada governo, resolve certos problemas e satisfaz certos grupos, mas seus instrumentos (eu quase dizia, seus ovos) resolvem e promovem outros problemas. O mundo social não é estático e tentar amarrá-lo foi o objetivo dos despotismos que conhecemos tão bem no Brasil.
Não há resposta única para a busca de um razoável bem-estar coletivo, conforme a antropologia tem mostrado. Em todo lugar, a ideia da harmonia é respondida de modo diverso. O problema é imaginar que, para além do bom senso que promove a equanimidade, existem respostas únicas e exclusivas para tais questões e que o nosso partido as conhece com a mesma certeza com a qual se quebra um ovo. Os bolos solam, e as omeletes desandam. Eis a ironia que transforma o projeto de liquidar a pobreza em corrupção.
Isaiah Berlin diz: “Se você estiver convencido de que existe uma solução para todos os problemas humanos e de que alguém possui uma visão de uma sociedade que pode se concretizar apenas seguindo certos passos por vez, você e seus seguidores necessariamente garantirão que nada no caminho atrapalhe o trajeto em direção ao suposto paraíso na Terra.”
O final da eleição —esse ritual que legitima um novo governo a ser rigorosamente governado por seus eleitores —tem a receita do encontro dos iniciados com os iniciadores, o povo comum que vota e aqueles a quem atribuímos o direito, o dever e a honra de administrar por tempo determinado o bem comum.
Escolher é ser livre. Escolher usando os mesmos instrumentos é ser igual. Preservemos essa omelete como uma prova viva do poder de escolher sem coações. E que o nosso primeiro gesto seja o de substituir a negação pela equanimidade.
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