- Valor Econômico
Vai vencer quem for capaz de convencer de que é o mal menor
"Nós concordamos em medir forças contando cabeças em lugar de quebrá-las, mas o princípio é exatamente o mesmo. Não é o lado mais sábio que ganha, mas aquele que, na ocasião, mostrou ter força superior (na qual a sabedoria, sem dúvida, é um elemento) alistando maior número em seu apoio. A minoria não cede por ser convencida de que está errada, mas porque é convencida que é uma minoria." Nada define melhor a democracia do que esta passagem de James Fitzjames Stephen, escrita em 1873, em polêmica com John Stuart Mill.
O equilíbrio que sustenta as democracias é tênue. Mas é esse respeito aos resultados da mera contagem de votos que distingue os povos civilizados dos bárbaros. Após as eleições, o conflito não desaparece, e o mecanismo eleitoral sobrevive apenas se perdedores e vencedores dispensarem o recurso à violência e à supressão de seus adversários. Os resultados deste domingo trazem motivos de sobra para temer por esta solução. Um candidato que faz apologia aberta à violência, que prefere quebrar cabeças a contá-las, esteve próximo da vitória em primeiro turno.
Entrevistado por um repórter empenhado em lhe dar oportunidade para se mostrar dócil e humano, Bolsonaro enunciou a seguinte máxima: "Eu prefiro a cadeia cheia de vagabundos do que o cemitério cheio de inocentes". Trocando em miúdos, o candidato anunciou que pretende suspender os códigos civil e penal. Na lógica bipolar do capitão da artilharia, vagabundos são inimigos que, se ainda não delinquiram, é por ter lhes faltado oportunidade para tanto, o que justificaria a prisão preventiva deles.
João Doria foi ainda mais longe e saiu-se com esta: "Não façam enfrentamento com a Polícia Militar nem com a Civil. Porque, a partir de 1º de janeiro, ou se rendem ou vão para o chão". Achando que não havia sido claro o suficiente, esclareceu: "Se fizer o enfrentamento com a polícia e atirar, a polícia atira. E atira para matar".
Frases como estas foram recebidas com naturalidade, sem causar repúdio ou espanto. Provavelmente, muitos dos eleitores desses candidatos também acreditam que estão metidos em uma guerra civil não declarada e que, para vencê-la, seria preciso recorrer a poderes excepcionais, fechar os olhos para detalhes e legalismos bobos. Muitos só conseguem ver-se entre os inocentes ameaçados e nem sequer sonham que, algum dia, possam ser incluídos entre os vagabundos que o capitão quer perseguir. Essa garantia, contudo, ensina o mais básico liberalismo, só pode ser obtida com o respeito à lei.
Bolsonaro, contudo, ficou a um triz de fechar a fatura sem fazer campanha. Cresceu porque deixou de expor suas ideias radicais e insanas. Seu guru e seu vice andaram abrindo a boca e arriscaram pôr tudo a perder. Com uma mensagem, o candidato silenciou-os com sua civilidade característica: "Faz um favor, junta essa galera aí num canto, todo mundo sai na porrada e fica quieto. Fica quieto todo mundo até as eleições".
E assim foi. Mas nem todos obedeceram à ordem. Houve quem se desesperasse diante da possibilidade de uma vitória de Fernando Haddad. Quem mora com Moro, a sra. Wolff, recorreu ao Instagram para voltar a pôr a boca no trombone, postando que todo voto "tem seu valor, exceto votar em bandido". Wolff substituiu o "#EleNão" pelo "#Não pode ter sido em vão". Entenda-se: aceita-se o voto em um apologista da tortura, alguém que acha que a morte de Herzog foi um acidente de trabalho, mas é inadmissível votar, mesmo que indiretamente, em quem meu marido prende.
Perto do que fez seu marido, a reação da sra. Wolff foi pequena. A liberação da delação de Palocci foi um sacrifício público à causa. Moro despiu a toga e partiu para a guerrilha, mandando às favas a compostura. Gilmar Mendes encontrou rival à altura. Como no episódio da liberação das gravações das conversas entre Dilma e Lula, o julgador deixou claro que pauta suas ações por código de ética próprio, que o colocaria acima das leis. A causa pede sacrifícios. O ministro Fux foi outro que achou que era tempo de apelar e justificou a censura preventiva, alegando que uma entrevista com Lula poderia gerar "desinformação na véspera do sufrágio."
A reação dos magistrados, contudo, foi desnecessária. Haddad estacionou nas pesquisas. Como sempre, analistas (este aqui incluído) erraram porque esqueceram que as taxas de crescimento perdem força quando se aproximam de seu teto. E, no frigir dos ovos, o PT obteve pouco mais que os votos de seus eleitores fiéis. A estratégia imposta por Lula salvou o partido da derrocada, mas contribuiu para alimentar a reação que quase deu a vitória a Bolsonaro no primeiro turno.
Como afirmou Fitzjames Stephen, a sabedoria conta para conquistar o voto da maioria. Bolsonaro e Haddad passaram ao segundo turno, mas são os candidatos mais rejeitados pelos eleitores. Algo como 50% dos eleitores afirmam que não votariam em um dos dois em hipótese alguma. Queiram ou não, terão que fazê-lo. São estas as opções que restam. Vai vencer quem for capaz de convencê-los de que representa o mal menor. Esperamos que o façam usando as cabeça em vez de quebrá-las.
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Fernando Limongi; é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.
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