quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Maria Cristina Fernandes: As lições de 1989 na revoada final de votos

- Valor Econômico

O desprendimento de Brizola em busca de um herdeiro

Ciro Gomes chega ao último debate da campanha sob a pressão de dois movimentos. Um busca fazer confluir para sua candidatura os votos do centro a fim de catapultá-lo ao segundo turno. O outro o pressiona a reprisar o desempenho de Leonel Brizola no último encontro do gênero do primeiro turno da eleição de 1989. São apostas para evitar que a campanha acabe no domingo e para conter uma diferença pró-Jair Bolsonaro intransponível num eventual segundo turno.

Naquela campanha, o fundador do partido de Ciro pediu aos eleitores indispostos a escolhê-lo, que votassem em qualquer outro candidato à exceção de Fernando Collor de Mello por todas as razões que os brasileiros só descobririam dois anos depois.

O desempenho deu a Brizola a credencial para levantar o braço do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva e dizer aos eleitores que todos, para o bem do país, deveriam engolir aquele sapo barbudo no segundo turno. O que se passou depois disso foi um dos fenômenos mais fulminantes de transferência de voto da história do país.

No mesmo Rio Grande do Sul em que hoje Bolsonaro nada de braçada, Brizola teve 69,4% dos votos e o então candidato petista, 6,5%. No segundo turno os votos brizolistas caíram no colo de Lula que alcançou 75,6% no Estado.

A migração de votos para Ciro neste primeiro turno esbarra na atração do candidato do PSL sobre setores representativos do eleitorado de centro, como os ruralistas. Por outro lado, a reprise de Brizola exigiria de Ciro o desprendimento que faltou a Lula e a seu partido quando estes roeram a corda de uma aliança com o candidato do PDT. O PT rejeitou a chapa porque pretendia fazer da disputa eleitoral um plebiscito sobre a permanência de Lula na cadeia. E permitiu a formação daquele que hoje parece o maior partido do país, o antipetismo.

Só uma aliança do gênero possibilitaria ao adversário de Bolsonaro disputar um eventual segundo turno com chances. Contas experientes indicam que o Datafolha, transposto para as urnas, se traduz hoje em 36,7 milhões de votos para Bolsonaro, 24,1 milhões e para Haddad. Outros 44 milhões de votos se distribuiriam entre os demais candidatos e as opções pelo voto nulo ou em branco.

Para vencer no primeiro turno, Bolsonaro teria que ser capaz de converter todos os indecisos e metade dos votos dos candidatos do centro, excluídos os 12,6 milhões que hoje o Datafolha atribui a Ciro. Este é o esforço da fábrica de notícias falsas que opera em regime de três turnos nesta reta final.

É mantida por grupos que se formaram autonomamente para trabalhar pelo candidato do PSL numa versão tupiniquim dos PACs. A exemplo dos comitês de ação política americanos, constituído por empresários e profissionais liberais para levantar recursos em defesa de candidatos e bandeiras sem vínculo oficial com as campanhas, esses grupos financiam e conduzem a eficiente estratégia de Bolsonaro nas redes sociais. Não se valem apenas de robôs. Já recrutam alguns dos melhores profissionais do mercado para o segundo turno.

Eduardo Bolsonaro parecia ter acabado de deixar o chão desta fábrica quando subiu ao carro de som no domingo passado para dizer que as eleitoras de direita não mostram os peitos nem defecam nas ruas. O PT ainda acreditava que as mulheres brasileiras haviam salvado a democracia quando o primeiro-filho já estava de posse do sucesso da operação que viralizou, com trucagens e notícias falsas, o #EleNão em comunidades religiosas - não apenas pentecostais - como uma ameaça aos valores da família brasileira.

A primeira vítima dessa operação foi a rejeição de Fernando Haddad, que saltou nove pontos percentuais. A candidatura Marina Silva, que havia pouco mais de um mês despontava como favorita com uma base sólida no eleitorado evangélico, também viu se acelerar sua perda de votos. De beneficiária de ondas semelhantes nas campanhas de 2010 e 2014, a candidata se transformou em sua vítima.

Mas as trucagens do multiculturalismo não são capazes de fazer o serviço sozinhas. O rompante pela tomada de poder de José Dirceu só fez mais estrago do que a ameaça ao décimo-terceiro salário de Hamilton Mourão porque ficou impune. Enquanto o general foi repreendido de imediato pelo capitão, demorou uma longa semana até que Fernando Haddad fosse autorizado a fazer o mesmo.

O tempo foi mais do que suficiente para dar combustível à tese de que o PT não está talhado para a crise de autoridade que toma conta do país - a mesma que permite a um juiz responsável pela quebra de sigilo de um presidente da República reincidir, impune, com a liberação de uma delação premiada contra um dos partidos às vésperas do primeiro turno de uma disputa eleitoral.

Malograda a derradeira tentativa pela desistência de Alckmin e Marina em nome de Ciro, o apelo do candidato do PDT por uma frente democrática seria o último suspiro de racionalidade numa campanha da qual nenhum beliscão parece ser capaz de livrar o país. Para se fazer merecedor deste aceno, o PT ainda tem um mea culpa que a alongada prisão de Lula não substitui porque reiteradamente contestada.

Haddad tem devolvido a pergunta, como se estivesse monitorado: "E do PSDB, por que ninguém cobra mea culpa?" Porque o PSDB parece ter seu lugar no purgatório reservado por eleitores que fazem seu dever de casa com mais afinco do que os tribunais.

Já o PT viu suas principais lideranças purgar o inferno das prisões e tem, novamente, uma chance. Se guiado pela bússola do sectarismo, não custará a desperdiçá-la no debate de hoje. Se as urnas de domingo reproduzirem o Datafolha, o PT, num segundo turno, precisaria converter 70% dos 44 milhões votos alheios aos finalistas para derrotar o bolsonarismo. Não o fará sem o mea culpa.

A direita ruma para ter o melhor desempenho eleitoral de sua história. Não se pode reduzi-lo a um tosco repositório de trucagens. Avançou porque foi capaz de manejar os cinquenta tons do antipetismo com uma liderança quase tão intuitiva quanto Lula. Entre um e outro, emergiu um país que, desde 1989, reduziu a um terço a fatia de analfabetos. É do que aprenderam como eleitores que resultará domingo.

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