- Folha de S. Paulo
O 'mito' já está se desfazendo para revelar o que de fato Bolsonaro sempre foi
Bolsonaro chegou à Presidência representando a revolta contra o sistema. O sentimento que o elevou ao poder —o mesmo que se viu, por exemplo, na greve dos caminhoneiros— é francamente revolucionário. Foi o voto de confiança numa figura messiânica que prometia, com a sua força redentora, "acabar com essa palhaçada" que é a velha política brasileira.
Foi um verdadeiro feito de marketing que um deputado com 27 anos de Câmara, boa parte deles no PP, que loteou a política carioca com seus filhos, um membro do baixo clero do que há de mais velho na política nacional, tenha conseguido se vender como um renovador radical que veio para limpar tudo. Antes mesmo de iniciar o mandato, contudo, a imagem do "mito" já está se desfazendo, para revelar o que ele de fato sempre foi: um velho político.
As revelações do Coaf sobre as transações suspeitas do ex-assessor de Flávio Bolsonaro apenas ilustram o fato. É cedo para tirar qualquer conclusão, mas é uma possibilidade que Flávio Bolsonaro cobrasse mesada dos cargos comissionados de seu gabinete. Se for isso mesmo, ele apenas fez o que tantos políticos e partidos brasileiros sempre fizeram. É como a política brasileira funciona.
O caixa dois, o "dízimo" para o partido ou para o representante, o carguinho para amigos e familiares, a aliança com indivíduos suspeitos. Tudo isso é ruim, e o Brasil será um país melhor quando essas práticas forem menos abrangentes. Mas isso dependerá de reformas do sistema, e não da perseguição implacável a cada um dos que simplesmente jogaram o jogo e tiveram o azar de serem pegos. Não é, portanto, um motivo para demonizar o novo governo.
Bolsonaro surfou a onda jacobina dos que estão prontos a cortar a cabeça de qualquer pequena transgressão das regras, ou até de qualquer suspeita de transgressão. Seus militantes eram taxativos: o PT? Totalmente corrupto. Alckmin? Escândalo das merendas. Marina? Foi do PT. Se aplicássemos a mesma condenação inflexível ao governo Bolsonaro —a Onyx Lorenzoni, que já admitiu ter recebido caixa dois, ao ex-assessor de Flávio Bolsonaro, à contratação da Wal do Açaí, ao ministro do Meio Ambiente que é réu na Justiça—, ele próprio iria para a guilhotina.
A única dúvida agora é saber se ele governará como político ou se tentará ainda manter o discurso antipolítico da campanha. Bolsonaro diz que governará sem "toma lá dá cá". Fará diferente de Temer, que para aprovar suas medidas abriu as portas dos ministérios e as torneiras das emendas parlamentares?
Até agora, a promessa parece estar sendo cumprida, mas isso não é necessariamente bom. Bolsonaro tem, em suas nomeações, praticado apenas o "toma lá", sem nenhuma expectativa que as bancadas e partidos beneficiados "deem cá" qualquer contrapartida. Está entregando o país a ruralistas, militares, evangélicos e ideólogos da extrema direita sem exigir nada em troca (como apoio a medidas impopulares mas necessárias ao país). Não tem sido um espetáculo edificante ou particularmente virtuoso e arrisca nos deixar, por exemplo, sem uma boa reformada Previdência.
A política é o exercício de conciliar interesses e ideias contraditórios. Isso por vezes é feio e fere nosso purismo ético e ideológico, mas a única alternativa é a violência. Salvo um golpe, Bolsonaro ou governará fazendo política ou não governará. Melhor já ir se acostumando à realidade como ela sempre foi.
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Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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