Magna Inácio: "Bancadas temáticas não reúnem condições para formação de maiorias estáveis no contexto brasileiro"
Por Malu Delgado | Valor Econômico
SÃO PAULO - Jair Bolsonaro definiu seus ministérios de maneira errática e oscilante, sem fazer um estudo aprofundado das estruturas burocráticas da máquina do Estado, opina a cientista política Magna Inácio, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, especializada em estudos sobre coalizões de governo.
Antes mesmo de o PSL, o partido do presidente, explicitar suas divisões internas, a professora afirmou, em entrevista ao Valor, que o partido de Bolsonaro é extremamente frágil e incapaz de lhe assegurar sustentação política no Congresso. Além de inexperientes, a maioria dos parlamentares "foram eleitos, em boa medida, por serem pessoas que tinham reputações ou visibilidade pessoal, então são pessoas que não vão ceder facilmente a qualquer pressão do governo se forem distintas daquelas que elas querem votar. É um partido que, embora grande, terá muito mais dificuldade para ter uma atuação coordenada e disciplinada dentro do Congresso."
Esta fragilidade talvez explique o fato de Bolsonaro ter feito um desenho de governo totalmente fechado, sem abrir negociações com partidos. Para a professora, não se sabe como o papel de liderança de Bolsonaro vai funcionar neste modelo. Ela crê, ainda, que a sucessão no Congresso vai ser fortemente influenciada pelos entes federativos, que ficaram sem espaço e sem interlocução no futuro governo, e buscarão, no Legislativo, um contraponto.
Veja os principais trechos da entrevista:
Valor: Os ministérios do futuro governo foram definidos sem observância da composição partidária. O que se pode esperar desta coalizão?
Magna Inácio: O grupo predominante é egresso da área militar; há o grupo de tecnocratas com experiências em decisões políticas, como consultores do Legislativo e membros do governo Temer; e um grupo, bem menor, formado por políticos. Há dois elementos fundamentais para pensar a estratégia que esse governo vai assumir. Um é a estratégia de redesenho da própria estrutura de governo, com a criação de dois superministérios (Economia e Justiça). Os dois vão atuar com centralização decisória muito grande, pelas áreas que vão aglutinar, e outros ministérios que tiveram sua conformação redesenhada. Mudanças, de estruturas bastante consolidadas, com burocracias antigas e institucionalizadas, como o Ministério do Trabalho, requerem conhecimento profundo para que se possa pensar num mínimo de coerência interna e capacidade de articulação horizontal entre ministérios. O que permanece ainda como interrogação é quais são os objetivos do governo acerca desta reorganização.
Valor: Há indicativos de que não houve um estudo profundo deste redesenho, já que foram inúmeros recuos, vaivém, dúvidas?
Magna: O processo, como tem ocorrido, mostra que não se trata de uma proposta desenhada com base no conhecimento da máquina administrativa. Inclusive este processo de idas e vindas de alguns ministérios, a síndrome do "resisto ou não resisto". Como foi o caso da Funai, uma estrutura que tem importância política fundamental. Essa oscilação na montagem da estrutura de governo sugere um processo que está sendo pensando na transição, e com bastante incerteza da própria equipe.
Valor: O objetivo da restruturação parece ser o enxugamento da máquina. Quais seriam as consequências de se montar um ministério sem estudos detalhados?
Magna: O processo de transição errático e oscilante confirma que é um plano de governo que está sendo experimentado neste momento como ensaio e erro. Estamos a estratégia de centralizar decisões em algumas áreas e vincular a realização de certos objetivos de governo à gestão de pessoas muito leais e muito próximas àquilo que o governo quer ver aprovado, que são os casos da Economia, Justiça, e os postos dos generais da reserva próximos ao presidente. É o que a gente chama de politização, mas não no sentido de partidarização. É escolher pessoas com base na lealdade ou proximidade de posições que o governo defende. A supercentralização decisória na área da economia não pode ser dissociada da confiança e expectativas depositadas na gestão do Paulo Guedes. É a expectativa de que a pessoa tenha a capacidade excepcional de fazer funcionar esta estrutura e garantir estes objetivos. É uma dependência muito maior de pessoas do que de uma arquitetura institucional que indique coerência interna, clareza sobre como será feita a coordenação horizontal no governo.
"Como Bolsonaro vai exercer o papel de líder neste governo? E como o desenho do gabinete dará sustentação a isso?"
Valor: Uma das variáveis da coalizão é a liderança do presidente. Bolsonaro terá dois superministros, Guedes e Moro. Há riscos?
Magna: Não me parece um desenho de presidência capaz de promover essa liderança da figura presidencial. Coordenar estes ministérios, manter o controle destes ministros e alinhar decisões tomadas nestes ministérios com as outras áreas e políticas requer capacidade institucional da presidência para fazer monitoramento, o que este governo, até então, não sinaliza. Haverá 4 unidades montadas [no Palácio do Planalto] para apoiar as relações com o Congresso, os Estados, e dar apoio direto ao Presidência. É um presidente que não tem experiência administrativa e não vem com conhecimento sobre o Executivo. Me parece uma posição bastante frágil para exercer a coordenação destes superministérios e manter a liderança presidencial do gabinete.
Valor: Apesar de alguns acenos partidários, ao PSL, DEM e MDB, a decisão de não negociar com partidos trará consequências?
Magna: Bolsonaro nunca foi uma liderança dentro do Congresso, era um parlamentar do baixo clero. Haveria, de certa forma, um risco muito grande de abrir negociação com os partidos, num primeiro momento, pela fragilidade do partido presidencial. O PSL tem quase a sua maioria formada por novatos. Não têm uma maioria com experiência parlamentar para dar, de fato, sustentação ao presidente. Esse movimento do Bolsonaro, de certa forma, indica a percepção de que negociar de imediato com partidos poderia fragilizar ainda mais sua posição no controle do governo. Então ele faz o movimento de fechar esse processo de negociação, de manter a mesa de negociação muito restrita a seus assessores mais leais. Mas em nenhum momento ele desconsidera a necessidade de fazer isso [negociar com partidos]. Mais do que um modelo de coalizão é uma estratégia de governo outsider, com uma base parlamentar frágil. Trazer o DEM, o PP, PSB, seria mais difícil para o Bolsonaro, num primeiro momento, manter o controle sobre o governo que dali sairia.
Valor: Bolsonaro associa a formação de um governo de coalizão a corrupção e ineficiência. Essa retórica antiestablishment dificulta a prática política, na sua opinião?
Magna: Esse tipo de afirmação claramente reforça e reduz o valor da negociação com os partidos e fortalece a posição do governo na negociação com Congresso e bancadas. Essa narrativa de que governos de coalizão decorrem sempre em corrupção não encontra sustentação nem na experiência brasileira e nem em experiências internacionais. O elemento mais grave é a desvalorização da função representativa do Congresso. É importante enfatizar que o presidente, no que tange às suas responsabilidades, é capaz de estruturar esta relação de forma mais ou menos programática, mais ou menos clientelista, mais ou menos populista. O presidente pode fazer esta negociação numa direção em que valorize a discussão de políticas públicas e de programas.
Valor: A influência das bancadas temáticas (evangélica e ruralista) não parece ter sido tão preponderante como se imaginava na formação de ministérios. Prevê ingerência destes setores no futuro governo?
Magna: É uma estratégia fadada ao insucesso. Bancadas temáticas não reúnem condições para formação de maiorias estáveis e maiorias de governo no contexto brasileiro. A gente tem uma estrutura, tanto da Câmara, quanto no Senado, que fortalece e depende da atuação dos partidos. As bancadas temáticas existem no Brasil até como uma reação a essa força muito grande dos partidos, para defender algumas políticas ou algumas áreas em que há discordâncias entre os partidos e proximidades entre parlamentares de diferentes siglas. As bancadas temáticas não reúnem capacidade de produzir votos disciplinados em relação às áreas que o governo terá que lidar. Mas tudo isso é a estratégia de desvalorização dos partidos, de apontar nova forma de relação com o Congresso, mas ele, como parlamentar, certamente sabe que isso não é suficiente para ter uma base estável. Formação de maiorias adocs, pontuais, gera, normalmente, um custo muito alto de coordenação da base política do governo. Uma administração que se inicia com uma agenda de reformas vastas, com expectativa muito grande dos eleitores, com esse tipo de coordenação com o Congresso, de coalizões pontuais, é um grande risco.
Valor: Diante da alta fragmentação partidária e da fragilidade do PSL, o que podemos esperar da briga por comissões no Congresso?
Magna: O Congresso, principalmente a Câmara, tem ampliado a sua influência na produção da legislação. Temos um indicador que é bastante tradicional, que é a dominância legislativa: do conjunto de leis aprovadas, quantas são de origem do Executivo e quantas são do Legislativo. Teoricamente, nas coalizões brasileiras desde os anos 90, o patamar de participação do Executivo na produção de leis sempre foi muito alto, em torno de 70%, 75%, 80%. Nos últimos anos, essa participação do Executivo tem se reduzido. O Legislativo tem conseguido aprovar um número maior de leis. Alguns, nos últimos anos, atribuíram isso a posturas de chantagem e retaliação ao governo Dilma, que seria a "rebelião Cunha". Mas outros estudos já mostram que se trata de um processo mais profundo, de mudanças, em que o Legislativo, enquanto instituição, está aumentando a produção na participação legal. E isso passa pelo controle destas estruturas, não só as presidências [das duas Casas], mas as comissões, relatorias, as pautas de comissões econômicas e de constituição e justiça que têm o poder de "matar as leis" se não estiverem de acordo com a Constituição ou se propuserem despesas não sustentáveis. Essa nova legislatura vai adotar estratégias claras de fortalecimento de sua capacidade de negociação com o Executivo, que está refratário a negociar com bases partidárias. Comissões são fundamentais.
"A coalizão do Bolsonaro é basicamente Sul-Sudeste. Não há espaço de negociação com os Estados e municípios"
Valor: Levando-se em conta a inexperiência desta equipe de governo, como você ressaltou, o grau de vulnerabilidade do governo no Congresso pode ser alto?
Magna: Sim, porque para além de qual vai ser o peso dos partidos dentro do governo, a relação com o Congresso requer monitoramento quase que diário, capacidade de negociar, definição de projetos que entram na pauta. E isso requer experiência. Algo que foi muito celebrado e comemorado, que foi o tamanho que o PSL saiu das urnas, é uma visão ingênua que não considera os problemas deste partido de assegurar um comportamento disciplinado. São parlamentares sem experiência parlamentar prévia. Foram eleitos, em boa medida, por serem pessoas que tinham reputações ou visibilidade pessoal, então são pessoas que não vão ceder facilmente a qualquer pressão do governo se forem distintas daquelas que elas querem votar. É um partido que, embora grande, terá muito mais dificuldade para ter uma atuação coordenada e disciplinada dentro do Congresso. Certamente haverá muitos conflitos internos, muitas disputas de poder porque é um momento inicial de formação deste grupo parlamentar. Já vimos inclusive vários destes parlamentares demonstrando o desejo de disputar a Presidência da Câmara. A dinâmica dentro do PSL certamente vai dificultar muito a capacidade do governo de fazer frente aos movimentos dos outros partidos, que têm lideranças experientes. Esses partidos têm capacidade muito maior de usar isso a seu favor, inclusive para controlar posições [comissões]. Um aspecto central será a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado.
Valor: O que se pode esperar desta sucessão no Congresso?
Magna: Não haverá adesismo, movimentos fortes de apoio imediato ao governo. Os partidos vão dar um tempo, vão mapear esse terreno antes de tomarem posições mais definitivas. E tanto a Câmara quanto o Senado são estruturas super presidencialistas, que fortalecem muito o papel do presidente destas Casas como um elemento organizador, não só pela autoridade interna, mas na relação com o Congresso. Acertadamente o Bolsonaro sinalizou que não vai assumir posição direta e nem reivindicar para o PSL a presidência das Casas, dando um sinal de que reconhecem a posição frágil e a necessidade de garantir que esses espaços sejam mantidos pelos maiores partidos, com os quais ele vai ter que negociar. Os partidos tendem a apoiar candidatos que tenham perfil mais moderado, com alguma proximidade, do ponto de vista de posições, com o governo. Não há espaço para um perfil muito distante do governo. É importante que seja um nome moderado, com capacidade de negociar e se aproximar do governo e manter uma relação institucional com o Executivo. Certamente se fortalecem os nomes que estão sobre a mesa, como o do Rodrigo Maia. No caso do Senado, a oposição e os independentes estão muito mais fortes. Isto pode significar problemas concretos. Há um outro elemento de política de coalizão, nem sempre destacado, que é o fato de que a coalizão também precisa abrir espaço para negociações federativas, com governadores e prefeitos. A coalizão do Bolsonaro é basicamente Sul-Sudeste, com uma concentração sem precedentes de ministros do Rio Grande do Sul. Uma concentração bastante arriscada à medida que não há, por via de ministérios, este espaço de negociação com Estados e municípios. Neste sentido, a Câmara e o Senado vão ter importância adicional para dar vazão a este tipo de expectativa e de pressão que virá das unidades federativas. E há expectativa de explosão fiscal e paralisia nos Estados. A eleição para as presidências da Câmara e do Senado não será um processo em que estará em jogo apenas os interesses dos partidos. Essa vazão de interesses federativos vai contaminar o processo.
Valor: Que perspectiva vê para políticas públicas neste governo, considerando as variáveis do presidencialismo de coalizão?
Magna: Em algumas áreas de políticas públicas, que foram pontos importantes na agenda do candidato, na área de educação, meio ambiente, econômica, devem ser apresentadas alterações significativas. Algo menos considerado no Brasil, mas que tem mostrado cada vez mais relevância, é que a ação unilateral do presidente não é realizada só por medidas provisórias. É feita principalmente por atos administrativos. O presidente pode fazer muitas coisas por meio de atos presidenciais e decretos normativos dos ministérios. Não é à toa que tivemos dois presidentes investigados pelo uso de decreto presidencial. O impeachment da Dilma foi baseado em três decretos deste tipo. O Temer é investigado pelo decreto dos Portos. É possível o presidente tomar muitas decisões e fazer alterações nas políticas públicas utilizando estes recursos, que são próprios do objetivo. E pode fazer isso principalmente com o objetivo de evitar embates ou contornar derrotas. Há espaço para o presidente tomar medidas que atendam as expectativas dos eleitores, que sinalizem mudanças de políticas públicas, sem que se faça isso pelo Congresso. Há boas possibilidades de uma resistência forte por parte das burocracias em consequência de deslocamentos de algumas delas para outras áreas (ex: Receita Federal e órgãos da área econômica). Outra forma de resistência tem a ver com discordância e percepção de que as políticas do governo não são as melhores e nem adequadas.
Valor: O Super Ministério da Economia terá seis secretarias.
Magna: É, nós já tivemos uma experiência anterior que não funcionou, que foi o tripé da economia sob a gestão da Zélia Cardoso de Mello. Esta concentração de poder decisório e capacidade decisória numa estrutura como essa requer capacidade de monitoramento, acompanhamento e coordenação que não é trivial.
Valor: Essa tarefa de monitoramento e coordenação é exclusiva do presidente da República?
Magna: Desde Fernando Henrique Cardoso, os presidentes se apoiam em alguns ministérios para coordenar todo gabinete, e normalmente são os ministérios da área econômica. A forma de controle, principalmente dos partidos, é pela via orçamentária. Os ministérios do Planejamento e da Fazenda sempre têm esse papel porque eles põem filtros importantes na tomada de decisão orçamentária, distribuição de recursos, viabilização ou não de tarefas executadas por outros ministérios. O que preocupa neste formato do Bolsonaro é que de um lado há essa concentração muito forte de alguns ministérios sem, até o momento, uma clareza de como o próprio presidente irá se relacionar com eles e mantê-los sob controle. Essa fala do Bolsonaro, de que ele delegou 100%, deu carta-branca, esse nível de delegação de poder é sempre o que permite ao presidente construir um Executivo coordenado. Ele tem que delegar poder para a estrutura da máquina funcionar, mas não ao ponto de ele perder a capacidade de exercer o controle e, principalmente, de manter esses assessores e ministros alinhados com o que deve ser seu programa de governo.
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