- O Globo
Hoje, apesar do discurso eleitoral do novo presidente, a democracia brasileira continua viva
Recebi uma mensagem de boas festas do deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) em que, além de saúde e paz, ele desejava um 2019 “sem retrocessos na nossa frágil democracia”. Com a cortesia habitual, Chico expressava um sentimento bastante comum entre quadros da esquerda nacional, o temor de que o governo Bolsonaro possa causar ruptura constitucional que represente dano à democracia brasileira. Com todo respeito que o deputado merece, preciso discordar dele. Nossa democracia é sólida e já comprovou sua força inúmeras vezes.
A primeira grande prova de estresse da democracia nacional foi vencida logo no primeiro minuto após o seu renascimento, antes mesmo do último general-presidente deixar o Palácio do Planalto. A internação do primeiro presidente civil depois da ditadura na véspera da sua posse resultou numa madrugada tensa, que foi ultrapassada de acordo com o estabelecido pela Constituição. O vice tomou posse. Em seguida, pouco mais de um mês depois, o presidente internado morreria, e o vice assumiria de vez o poder. Justamente o vice que traíra os generais, saindo do partido que apoiava a ditadura e ajudando a derrotá-la. Mesmo assim, nenhum passo atrás foi dado.
Alguns anos mais tarde, o Brasil produziria uma nova Constituição, rompendo com todos os dogmas e preceitos militares impostos na Carta anterior, que tinha sido escrita em gabinete a pedido e orientada pelos militares que detinham o poder. Ao promulgá-la, o presidente da Constituinte a batizaria de Constituição Cidadã e diria ter ódio, ódio e nojo, da ditadura que se encerrara apenas três anos antes. Outra vez, nenhum recuo, nenhuma ameaça. A democracia que se reinstalara recentemente no Brasil seguia seu roteiro e perseverava. Os novos generais que comandavam as Forças Armadas respeitavam e participavam da nova vida nacional.
O Brasil provaria outras vezes que era um novo país. O segundo presidente civil, e o primeiro eleito pelo voto popular, tomaria o poder confiscando a poupança nacional e em seguida se enredaria num mar de lama que só seria visto de maneira igual anos depois, na era petista. Foi abandonado pelos poucos parlamentares que o apoiavam e acabou sendo afastado do seu cargo pelo impeachment, um instrumento constitucional usado pela primeira vez na História do país. E não ocorreu retrocesso.
Ao longo dos anos, os governos empacotaram inúmeras propostas de controle da inflação sem sucesso. Alguns, como o do confisco das poupanças, causaram enormes danos à economia nacional, outros geraram esperança antes de resultarem em enorme frustração popular. Todos os brasileiros perderam inúmeras vezes por estes pacotes mal amarrados, os pobres perderam mais. Os muitos cenários de caos econômicos que se sucederam não foram suficientes para causar solução de continuidade na vida democrática.
Mais adiante, na eleição do primeiro presidente operário do país, a transição foi tão democrática quanto festiva. O país dava um passo importante na consolidação de suas instituições, tinha balizas bem definidas pela Constituição que nem mesmo um presidente de esquerda poderia ultrapassar. E esse presidente nem tentou avançar o sinal. Fez um governo social democrata com foco magnificado na distribuição de renda. Seu êxito quase se perdeu pelo escândalo do mensalão. Mas o país ultrapassou mais este revés e a democracia seguiu sólida adiante.
E ainda haveria um outro megaescândalo seguido de novo impeachment que geraram uma divisão jamais vista entre os brasileiros. Mas nenhum passo atrás foi dado. Hoje, apesar do discurso eleitoral do novo presidente, a democracia brasileira continua viva. Tanto aquele discurso do então candidato a presidente quanto o temor agora manifestado pelo campo derrotado na eleição refletem apenas retórica. No primeiro caso, para mostrar distância do PT. No segundo, para manter a esquerda unida em torno de um inimigo comum.
A democracia brasileira é forte e vencerá outra etapa. A vida nacional seguirá seu rumo. Se o presidente tiver êxito, poderá ser eleito para um segundo mandato ou fazer seu sucessor. Se fracassar, perderá a próxima eleição. Se atentar contra a Constituição, será afastado, como outros já foram, e o vice ocupará o cargo. Se o vice cair, o presidente da Câmara assumirá o poder e convocará novas eleições. É isso o que prevê a Constituição. E será assim que o país seguirá construindo a sua História.
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