- O Globo
Demonização do adversário derrotado ou de algum inimigo imaginário compensa a incapacidade de formular análise
Qualquer governante leva tempo para sair do modo campanha eleitoral e engrenar na planície mais substantiva do liderar e fazer. Alguns, como Donald Trump, preferem o abismo a desgarrar-se da retórica que os catapultou ao poder. Passados dois anos à frente da Casa Banca, o presidente dos Estados Unidos continua entrincheirado em bordões que só fazem nexo para seu eleitorado mais fundamentalista. De braços cruzados sobre o peito em gestual de birra, ele exige do Congresso a alocação de US$ 5 bilhões para a construção de sua mítica muralha anti-imigração, sem abandonar a fantasia de que o México pagará pela obra. Descolamento tão agudo da realidade costuma sair caro para governante e governados. O ex-líder soviético Nikita Kruschev conheceu os limites do conselho que deu a Richard Nixon em meados do século passado: “Se as pessoas acreditam que ali existe um rio imaginário, melhor não dizer que não há rio algum. Melhor construir uma ponte imaginária sobre o rio imaginário”. Como se sabe, Kruschev e Nixon acabaram defenestrados do poder.
Na safra de discursos de posse e primeiras entrevistas dessa chamada “Nova Era”, ou “Revolução”, do Brasil de Bolsonaro, é fácil descabelar-se com a enxurrada de arabescos verbais — “libertar o Itamaraty”, “despetizar o governo”, “desesquecer”, “o Brasil preso fora de si mesmo”, “Gnosesthe ten aletheian kai he aletheia eleutherosei humas”, “menino veste azul, menina veste rosa”, com sua incongruente bandeira de Israel ao fundo.
Arroubos assim costumam atingir seu objetivo num primeiro momento: a demonização do adversário derrotado ou de algum inimigo imaginário compensa a incapacidade de formular uma análise ou argumentação mais consequentes. Frases de efeito atuam como palavras de ordem mobilizadoras, mesmo quando incompreensíveis. O “azul/rosa” foi apenas uma metáfora para a “nova era”, esclareceu em entrevista à GloboNews a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Mas como já ensinou George Orwell, metáforas não raro são coleções de palavras sem poder evocativo, usadas para salvar pessoas com dificuldade de criar frases próprias.
Décadas atrás, um afiadíssimo diretor de redação dividia em três categorias a parte de sua tribo que lhe dava trabalho: articuladores do caos, simuladores de produtividade e falsos ecléticos. Destes, os que mais o irritavam eram os simuladores de produtividade, e certamente vociferaria ao ver o pacote de metas divulgadas pelo novo governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Elas ocuparam duas páginas inteiras do GLOBO, são compostas de 203 itens perfeitamente divididos por áreas, e subdivididos por prazo de cumprimento. Uma beleza.
Merecidamente, visto ser esta a questão que mais aflige e afeta os 17 milhões de cidadãos do estado, a lista começa pela segurança pública, e lá pelas tantas, como tarefa a ser cumprida pela Polícia Civil em cem dias cravados, lê-se: “Aumentar em 20% o número de indiciamentos e elucidação dos crimes no estado, em comparação ao mês anterior e ao mesmo período do ano anterior.”
Com prazo um pouco maior, de no máximo 180 dias, consta: “Aperfeiçoar as investigações dos homicídios para aumentar a identificação de autoria.”
Cabe perguntar se no lote de novos indiciamentos e elucidação de crimes constará o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. A fuzilaria que, segundo o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, deixou um cipoal de pistas de poderosos interessados em impedir sua elucidação, completa dez meses no próximo dia 14.
Cabe também apontar para a ausência de qualquer referência à existência e atuação das milícias no estado, apesar do detalhado empenho do governador em dizimar o crime organizado. O enquadramento dos chefes do tráfico como terroristas, o abate de traficantes armados com fuzis — idealmente de forma certeira, com “tiros na cabecinha” —, a idealização de uma prisão como Guantánamo (umbilicalmente associada à prática de tortura) para os que não forem mortos, muito foi dito para combater a bandidagem. Faltou pronunciar a palavra mais incômoda: milícias, essa gangrena que avança sobre a lei, o poder e a vida do cidadão fluminense.
No universo da arte, navegar pelo imaginário é crucial . “ Mas minha senhora”, teve de explicar Henri Matisse a uma senhora indignada porque a figura feminina de um dos quadros tinha uma perna mais curta que a outra, “isso não é uma mulher. Isso é uma pintura” . Na vida política, para usar um vocábulo introduzido essa semana pelo novo chanceler, às vezes é imperioso “desesquecer”.
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