- Valor Econômico
Sobretaxa para carro importado marcou Inovar-auto
Na antiguidade, trovões podiam ser interpretados como sinal de que a imprudência de algum pecador havia despertado a ira dos deuses. Seria um exagero afirmar que os dirigentes da indústria automobilística têm sido castigados por algum herói mitológico. Mas a sucessão de desastres que atinge o setor há pelo menos três anos serve como pista de que erros estratégicos - alguns imperdoáveis - somados a circunstâncias desfavoráveis à forma de usar o automóvel empurram os fabricantes de veículos para uma espécie de "tempestade perfeita".
Os deuses das civilizações passadas não perdoariam os envolvidos no escândalo conhecido como "dieselgate", que começou na Volkswagen e respingou em várias outras montadoras. Em setembro de 2015, a Agência Americana de Meio Ambiente acusou a Volks de ter violado testes de emissões com a ajuda de um dispositivo que fraudava o controle de gás nitrogênio. A empresa admitiu a manobra e diretores foram presos.
A indústria de veículos provavelmente tem sido uma das maiores vítimas da rápida evolução tecnológica que envolve uma série de coisas usadas pelo ser humano. Mas é, ao mesmo tempo, também culpada pela demora em reinventar-se. Muito bem preparadas e estruturadas para um modelo de produção que ao longo de quase um século deu certo, algumas dessas empresas relutaram em juntar-se ao "inimigo". Ou seja, levaram um tempo para perceber a necessidade de fazer parcerias com empresas de tecnologia, como o Google.
E levaram um susto ao assistir à ascensão de novatas prestadoras de serviço de transporte por aplicativo. O valor de mercado da Uber está em US$ 62 bilhões, com chances de aumentar rapidamente logo depois do seu lançamento no mercado de ações, que está para acontecer.
O valor de mercado das duas maiores montadoras americanas, Ford e General Motors, está em torno de US$ 45 bilhões e US$ 51 bilhões, respectivamente. A Toyota percebeu a oportunidade e anunciou recentemente que vai investir US$ 500 milhões na Uber como parte de acordo para o desenvolvimento de carros autônomos.
Em novembro, a comunidade automotiva estremeceu com a prisão, no Japão, de Carlos Ghosn, até então uma das principais estrelas do setor. As acusações de que o executivo brasileiro cometeu crimes contra o fisco japonês enquanto esteve no comando da aliança Renault-Nissan-Mitsubishi chocaram o setor. Mas serviram, ao mesmo tempo, para trazer à tona uma rediscussão do modelo de administração criado nessa indústria e que transformou gestores em mitos ou heróis.
Há poucos dias, o presidente de uma montadora no Brasil referiu-se, numa conversa informal, a essa mitologia criada na indústria automobilística. Falou sobre a observação feita por um executivo que havia se aposentado recentemente. "Acho que minhas piadas perderam a graça porque as pessoas não riem tanto quanto riam quando eu era CEO", queixou-se o colega.
A soberba que caracterizou a conduta de parte dos executivos que passaram por esse setor perdeu o sentido. Assim como salões de automóveis internacionais perderam o glamour e são desafiados a mudar a forma de abordar o público. No salão de Detroit, que terminou no domingo, as principais novidades não estavam nos carros expostos, mas nas medidas que as montadoras têm tomado para enxugar estruturas.
Na véspera do salão, a Ford anunciou um drástico plano de enxugamento na Europa e o segundo dia da apresentação do salão de Detroit à imprensa foi marcado pela notícia de uma nova aliança. Volkswagen e Ford uniram-se mundialmente para dividir custos. Há menos de dois anos, a GM vendeu a operação europeia, a Opel, para o grupo PSA Peugeot Citroën.
As montadoras também continuam carregando o trauma dos recalls. Embora seja de bom tom convocar o cliente para trocar uma peça do carro que pode provocar acidentes, chama cada vez mais a atenção a quantidade de recalls e, ainda, o número de veículos envolvidos.
Há poucos dias a BMW do Brasil anunciou um recall que envolve até carros produzidos há 25 anos. Os proprietários de 158 veículos fabricados entre 1994 e 2008 e 478 motos produzidas entre 1996 e 2008 foram chamados para agendar uma verificação de sistemas de segurança que envolvem interruptores de luzes de freio e suportes de apoio dos amortecedores, entre outros.
Mas a maior pressão para essa indústria se reinventar vem da Europa, que impõe metas de redução de poluentes e de economia cada vez mais rígidas. Por conta disso, mais de um século depois de sua invenção, o motor a combustão está fadado a desaparecer. Praticamente todas as montadoras têm planos ousados de eletrificação dos veículos. A Volvo anunciou que já neste ano todos os seus automóveis serão elétricos ou híbridos. Po r conta dessa tendência, nos EUA, a GM vai fechar fábricas de motores.
Na "tempestade perfeita", as montadoras também começam a perder grande parte dos incentivos fiscais que embalaram seus negócios no Brasil, um mercado importante para a indústria. A última benesse protetora para fábricas de veículos instaladas no Brasil foi concedida no Inovar-Auto. No programa que vigorou entre 2012 e 2017, foi criada sobretaxa de 30 pontos percentuais além da alíquota de 35% de Imposto de Importação de automóveis.
Depois disso, os benefícios fiscais começaram a encolher. No programa que entrou em vigor neste ano, o Rota 2030, os incentivos federais limitam-se à área de pesquisa e desenvolvimento. Restam os pacotes estaduais, responsáveis pela descentralização dessa indústria nos últimos anos.
Mas as montadoras não estão satisfeitas. Num movimento puxado por GM, o setor começou a buscar incentivos tributários em São Paulo. A GM também está num processo de negociação com sindicatos para enxugar custos trabalhistas.
Para aplacar a fúria dos deuses é preciso fazer sacrifícios. Mas, por enquanto, no Brasil, as montadoras parecem querer que os que estão a sua volta o façam.
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