- O Globo
É crucial parar de estimular o uso da força ou da arma ao se apresentar quem faz uso delas como heróis
Para enfrentar questões complexas que envolvem o crime, não se deve reduzi-las a uma só dimensão como a jurídico-penal. Não que esta não seja relevante nem que signifique mais rigor apenas para os acusados que pertençam às classes destituídas. Algumas das medidas do projeto anticrime representam até mais democracia nos julgamentos, como a que determina que o cumprimento de pena de prisão seja imediato, logo após a condenação em segunda instância. Sabe-se que acusados pobres não têm como se valer dos recursos que se eternizam no caso dos opulentos, pois são presos em flagrante pela palavra do policial. Outra mais igualitária é a extensão da obrigatoriedade do regime fechado, desde o início do cumprimento da pena, para os condenados por crimes de corrupção passiva, corrupção ativa e peculato, todos crimes de colarinho branco, antes apenas aplicável aos que são condenados a mais de oito anos de perda de liberdade, geralmente os que não podem pagar a bons advogados para diminuir a pena.
A definição jurídica de organização criminosa ampliou-se bastante e agora abrange todas que tenham o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais, o que inclui o crime contra a economia popular e as verbas públicas. Já quando define a organização criminosa “em âmbito transnacional”, e que se “se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica”, resvala quando cita apenas comandos de traficantes e assaltantes que dominam áreas das cidades e as prisões do país, embora cite as milícias, fenômeno do Rio de Janeiro. Exclui as organizações financeiras de lavagem de dinheiro vindo da corrupção e da grilagem de terras que acontecem em todo o país.
A negociação de confissão é uma faca de dois gumes: liberta o acusado da pressão da organização criminosa, mas pode fazê-lo assumir um crime que não cometeu para receber pena leve.
Os maiores problemas decorrem de não terem consultado os pesquisadores de segurança pública e da criminalidade violenta que têm pensado muito sobre os complexos processos que poderiam ser chamados de círculos viciosos por sustentarem o aumento do crime. Colegas já chamaram a atenção para o erro de não considerar a gestão e a integração dos vários órgãos do sistema de Justiça e a necessária cooperação entre eles cruzando as fronteiras entre cidades e estados.
Outros, mais preocupados com a equidade, denunciam a liberação da subjetividade de quem julga sobre a progressão do regime, “subordinada ao mérito do condenado e à constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir”. Ora, conhecendo a tendenciosidade de julgamentos que envolvem os jovens favelados ou da periferia, pobres e de cor de pele mais escura, essa liberação vai piorar ainda mais a prática de “prender muito, porém mal”, um dos mecanismos perversos que resultam na superpopulação carcerária. Já no julgamento de policiais, o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Ora, sabe-se que um dos motores da violência, de todos os protagonistas dela, é justamente descontrole das emoções.
Em vez de favorecer os agentes do Estado, não seria mais eficaz prevenir este descontrole num projeto de prevenção para mudar o etos de policiais guerreiros, homens abandonados por mulheres, policiais e bandidos que cobram supostas dívidas em seus negócios ilegais, vizinhos irados com o barulho do outro, motoristas tomados de fúria no trânsito, todos incluídos no conceito de homo furens?
Um primeiro passo crucial é parar de estimular o uso da força ou da arma ao se apresentar quem faz uso delas como heróis, abrindo a caixa de pandora das emoções primitivas que deveriam ser contidas no etos civilizado. Essa narrativa aumentou exponencialmente as agressões nas relações interpessoais, inclusive o feminicídio. Não estamos em guerra com inimigos externos, não precisamos de heróis que matam. Precisamos de heróis que cuidam, como os bombeiros em Brumadinho.
*Alba Zaluar é pesquisadora visitante do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj
Um comentário:
Parabéns a todo/as que saem da lógica restritiva do discurso de "nossa esquerda heroica" contra "a direita malévola deles" (e vice-versa).
Texto irrepreensível na minha visão: recebe sem pré-conceito uma proposta, reconhece o que é avanço (mesmo que fortaleça "o outro lado") e traça as considerações do que deveria ser melhor.
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