- Folha de S. Paulo
Marielle foi executada pois colocava em risco os negócios e a segurança das milícias
Ela morreu porque era negra, homossexual, feminista e socialista. Um ano atrás, logo após o assassinato de Marielle Franco, incontáveis ativistas de esquerda atribuíram o crime a isso que a lei qualifica como "motivo torpe". No dia da prisão dos suspeitos (12/3), a promotora Simone Sibílio, coordenadora do Gaeco, reproduziu a conclusão prévia: "os autos de investigação nos autorizam a imputar aos dois denunciados a motivação torpe, decorrente de uma repulsa à atuação política de Marielle na defesa de suas causas: minorias, mulheres negras, LGBT". No megafone dos ativistas, o diagnóstico reflete o impulso de direcionar os holofotes para suas convicções militantes. Já no microfone da promotora, denota incompetência —ou, pior, o desejo de encerrar as investigações sem elucidar a autoria intelectual da execução.
O crime foi meticulosamente planejado. Os suspeitos não mantinham relações pessoais com a vítima. Um deles pertenceria a uma milícia de Rio das Pedras; o outro seria responsável por homicídios ligados à contravenção. Tudo indica que eles dispunham de um arsenal de fuzis de assalto M-16. A tese do "crime de ódio" não combina com esse conjunto de circunstâncias. As causas das "minorias, mulheres negras, LGBT" contam com inúmeros destacados porta-vozes. Contudo, não há indícios de que os suspeitos buscavam a eliminação genérica deles. Por que precisamente Marielle, entre tantos?
Num artigo publicado na Folha, Mônica Benício, viúva de Marielle, faz referências ao racismo e à homofobia mas não inclui, em momento nenhum, a palavra "milícias". Talvez sem perceber, seu texto assenta-se sobre a tese do "crime de ódio". Contudo, simultaneamente, em outra declaração, afirma que "não basta prender mercenários" pois é preciso "saber quem mandou articular tudo isso e qual foi a motivação".
O problema é que, se estamos diante de um "crime de ódio", a demanda não faz sentido. Nessa hipótese, os suspeitos não poderiam ser classificados como "mercenários" e suas recompensas transitariam exclusivamente na esfera psicológica. A viúva da vítima tem direito à confusão; a promotoria não tem. A promotora que, açodada, joga todas as fichas na "motivação torpe" está, conscientemente ou não, sabotando a investigação.
A indagação "quem mandou articular tudo isso?" inscreve-se na tese do crime político, que Simone parece disposta a afastar. Marielle, negra e homossexual, assim como Marcelo Freixo, branco e heterossexual, era uma liderança engajada na exposição das ligações das milícias com a polícia e com a política. A primeira foi executada; o segundo consta de listas semipúblicas de "marcados para morrer" das milícias. Sob a lógica do crime político, compreendem-se as características metódicas da execução e as motivações racionais que deflagraram a operação. Mas ela solicita perseguir respostas politicamente sensíveis.
Marielle foi executada pois colocava em risco os negócios e a segurança das milícias. Raul Jungmann, ex-ministro da Segurança Pública, partia desse princípio quando declarou, há quatro meses, que um "complô" impedia que viessem à tona "os mandantes e executores" do assassinato. Na ocasião, Jungmann atribuiu o "complô" a "interesses que envolvem agentes públicos, milícias, políticos". Simone, a promotora, tem evidências de que o ex-ministro assoprava um balão de denúncias vazias?
De um ex-ministro a um ministro, e do passado ao presente: Sergio Moro assegurou que a Polícia Federal "continuará contribuindo com todos os meios necessários para as investigações do crime e das tentativas de obstruí-las". Disse, ainda, esperar que as prisões conduzam à "elucidação completa deste grave crime, para que todos os responsáveis sejam levados à Justiça". O "complô", porém, segue ativo, agora agarrado à conveniente tese do "crime de ódio".
*Demétrio Magnoli, Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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