- O Globo
A mão que exalta é a mesma que exonera. O governador Witzel anunciou o afastamento do delegado Giniton Lages, tão logo este anunciou a prisão dos prováveis executores de Marielle e Anderson. As razões da mudança permanecem obscuras. Alimentam especulações sobre a vizinhança do clã Bolsonaro com o bárbaro crime. A busca dos mandantes será objeto da fase 2 da investigação. Em tese.
Além da materialidade da trama letal — das intenções e planejamento à execução (a única com avanços concretos, ainda que tardios) —, é importante examinar o caldo de cultura em que esses crimes ocorreram.
Há um “espírito miliciano” crescente no país. Milícia é contrafação do tráfico armado de drogas ilícitas: controle territorial manu militari, negócios ilícitos de todo tipo, e não apenas de entorpecentes, banimento ou eliminação dos que não se submetem. Com o substantivo nutriente da forte inserção no aparato de Estado, em especial o policial e o político, Legislativo e Executivo.
Destaque-se, por sinal, que quase um ano de intervenção das Forças Armadas na segurança fluminense não logrou avanços no combate a essas organizações criminosas paramilitares, que se ampliam.
As relações dos Bolsonaro com figuras desses grupos são tragicamente notórias. De elogios nas tribunas da Câmara Federal e da Assembleia fluminense ao acolhimento de pessoas vinculadas a eles em suas equipes parlamentares, em convívio orgânico. Em uma República digna desse nome, isso deveria ser investigado em profundidade. Bem como o escândalo de uma “segurança” presidencial — e antes, de candidato ao mais alto posto da nação —que não detecta, no condomínio de residência de Jair Bolsonaro no Rio a presença de um dos maiores traficantes de armas do país, que ali vivia em luxo e sossego. Quem lhe protegia?
“Espírito miliciano” é o do ódio ao adversário, aceitando ou promovendo até sua tortura ou execução. É a negação da diversidade e do respeito à diferença, seja no plano das visões de mundo ou das orientações sexo-afetivas. É o raciocínio raso que traz de volta conceitos da “Guerra Fria”, enxergando o “inimigo solerte”, socialista ou comunista, em qualquer movimento político que conteste seu domínio. É ver o outro não como um semelhante ao alcance de um abraço, mas uma ameaça que pede o braço ao alcance de uma arma para enfrentá-lo. Reinado da estupidez.
É o elogio da desconstrução, como pateticamente Bolsonaro anunciou, em sua visita de servilismo incomum aos EUA: “o Brasil não é um terreno aberto onde pretendemos construir coisas para o nosso povo. Temos é que desconstruir, desfazer muita coisa (...). Se eu puder pelo menos ser uma ponte de inflexão, já estou muito feliz”.
Para além de qualquer imprescindível investigação para se chegar aos mandantes da execução de Marielle e Anderson, bem como da superação dessa estatística absurda que mostra que apenas 10% dos 60 mil homicídios/ano no Brasil são elucidados, é preciso afirmar que gatilhos covardes são acionados também por quem elogia, aplaude, condecora, emprega e tem relações com todos os grupos mafiosos que fazem da violência e das transações escusas seu modo de operar e razão de existir. É a gangsterização da vida nacional.
Na obra clássica “O espírito das leis”, de 1748, Montesquieu as definiu como “as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”. Isso é controverso, mas há uma “natureza das coisas” que revela, com fartas provas, que o clã Bolsonaro, líder de uma espécie de marcha a ré pública no Brasil, sempre estabeleceu relações próximas com as milícias. Seu espírito truculento e tosco caracteriza o modo dominante de fazer política hoje.
O mesmo Montesquieu afirmou que, em sua época, havia “três espécies de governo: o republicano, o monárquico e o despótico”. O Brasil, passados 271 anos, parece conviver com essa tríade anômala.
*Chico Alencar é escritor e professor da UFRJ
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