quarta-feira, 10 de abril de 2019

Zuenir Ventura: O rapto de inocentes

- O Globo

‘Sequestros tinham como objetivo’, explica o autor, ‘difundir o terror entre a população’

A crença era de que só as outras ditaduras, a da Argentina e a do Chile, principalmente, haviam sequestrado e levado para adoção clandestina filhos pequenos de militantes políticos presos ou mortos. A nossa, apesar da crueldade, não chegara a esse ponto.

Intrigado com essa contradição, o jornalista Eduardo Reina saiu a campo, e o resultado de anos de meticulosa apuração é um impressionante livro de reportagem investigativa, “Cativeiros sem fim”, em que constata a ocorrência de pelo menos 19 desses crimes, 11 dos quais contra filhos de guerrilheiros do Araguaia ou de camponeses que apoiavam o movimento, além de cinco índios Marãiwatsédé.

“Os sequestros tinham como objetivo”, explica o autor, “difundir o terror entre a população, vingar-se das famílias, interrogar as crianças e educá-las com uma ideologia contrária à dos pais”.

No lançamento do livro em SP estava presente uma das personagens, Iracema, de estimados 65 anos, que na noite de 19 de maio de 1964, então pré-adolescente, foi sequestrada, presa e seviciada no DOI-Codi pernambucano junto com a mãe, Lucia, ainda desaparecida. “Tenho de agradecer por estar viva, por ter uma idade, um nome, por eu ser alguém”.

Abandonada ferida dentro de um saco de estopa com mau cheiro numa praça do Recife, foi encontrada e entregue a um casal que a levou para o Rio.“Eu passei pela mão de várias famílias, mas nenhuma era a minha”. Ainda adolescente, em uma dessas casas, conheceu um homem com quem teve dois filhos. Com o fim do relacionamento, foi para a capital paulista, onde mora com seus agora seis filhos.

“Essa não é uma história que eu inventei. Essa é a história em que me puseram dentro. Aí agora vem dizer: ‘vamos festejar a ditadura militar’. Eu estou festejando a vida”.
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Pessoas andando com água na cintura, carros submersos, dez mortes até ontem à noite, ruas transformadas em cachoeiras, passageiros presos em ônibus por seis horas, residências inundadas, empregados dormindo no trabalho — não me lembro de ter visto ao mesmo tempo cenas como as da noite e da madrugada de anteontem para ontem no Rio.

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