- Folha de S. Paulo
Se ato for expressivo, Bolsonaro se cacifa para peitar Congresso
“Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs”, escreveu João do Rio (“A Alma Encantadora das Ruas”).
Rua cheia magnetiza. Gera políticos apreensivos e intelectuais esperançosos. Ambos tendem a vê-la como uma homogeneidade: “o povo”, “a multidão”.
Mas termos assim genéricos pouco explicam, porque manifestações de porte jamais são homogêneas. Volume surge quando há múltiplos organizadores. Protesto grande resulta de trabalho duro. Requisita planejamento, convocação, organização, financiamento.
Quem faz o serviço são grupos às vezes mais —partidos, sindicatos— às vezes menos —associações, movimentos, coletivos— estruturados. Claro, há aderentes avulsos, mas só se adere ao que já se organizou.
Variedade de organizadores, variedade de agenda. Protesto é democrático porque dispensa crachá para entrar. Quem convoca não controla quem vai nem os demais convocadores —muitas vezes, nem as bandeiras levantadas.
Grandes manifestações são colcha de retalhos de várias pequenas simultâneas. Foi assim em 2013, quando havia muitos movimentos, mas apartados em campos diferentes: o autonomista, focalizando novas identidades, o socialista, em torno de direitos sociais, e o patriota, com a anticorrupção. Distintos, mas lado a lado.
A história foi outra em março de 2015. O campo patriota tomou a rua sozinho e vertentes começaram a assomar. A diferenciação ficou suspensa durante a campanha “Fora Dilma”, respondida pela contrária, “Não vai ter golpe”. Esse ciclo de protestos polarizou a rua entre defesa e ataque ao impeachment, ambos os lados massudos, mas separados. Em 2013, os contrários se suportavam; em 2015, não.
A intolerância cresceu em 2018, em atos sucessivos de sentido oposto (“Ele não”, “Ele sim”) nas vésperas da eleição. Um lado levou na urna, o outro sobreviveu na rua e se reaglutinou no “Lula livre”. Mas o foco no ex-presidente limitava a adesão.
A esquerda se reinflou na rua por obra do governo, que pôs na mesa pautas transversais com capacidade de tração: educação e Previdência.
O ato de 15 de maio foi vigoroso porque incidiu sobre categorias muito articuladas: professores universitários e estudantes. Nacional e coordenado, tomou 222 cidades, em todos os estados. A envergadura, contudo, variou da dúzia às centenas de milhares.
Ao contrário do prometido na hashtag “tsunami”, não repetiu a casa do milhão de 2013 e 2015. O maior evento, o paulistano, congregou 250 mil. Isso na conta da UNE, que —cabe desconto— somou 1,5 milhão no país todo. Não é pouco, mas um único ato do campo patriota em São Paulo, em 2015, reuniu perto de 1 milhão —a PM estimou, reaplique-se o desconto.
A esquerda voltou sem as novidades —formas horizontais de organização, tática black bloc— que impactaram em 2013. Trouxe o estilo de protesto usual do campo socialista, com seu arsenal vermelho. Idem para os atores. Além das esperadas associações de professores, funcionários e estudantes, lá estavam os sindicatos, movimentos e partidos de esquerda.
Já o campo patriota atravessou o espelho. Queira ou não, virou governo. Sua unidade vinha do alvo comum. Com o inimigo na cadeia e o amigo no Planalto, a coesão desmanchou. Os subcampos liberal, conservador e autoritário abriram diferenciação entre si. O que o antipetismo uniu, o poder separa.
Quem chama o ato deste domingo (26) são vários movimentos conservadores, o NasRuas à frente, todo o subcampo autoritário (Direita São Paulo, Despertar Patriótico, Avança Brasil, Patriotas Lobos Brasil, São Paulo Conservador etc), mais o Clube Militar, de amplo poder de convocação, e o MC Reaça, o preferido dos Bolsonaros. Movimentos liberais, como o Vem Pra Rua e o MBL, protagonistas no “Fora Dilma”, abandonaram o evento.
Até o fim do domingo se saberá a natureza da relação governo-rua. Se o apoio pender para o subcampo liberal, que recomendou faltar, a mobilização será um fiasco e o presidente (mesmo se ausente, a simpatia é óbvia) queimará pontes.
Mas se o ato dos subcampos conservador e autoritário for expressivo, Bolsonaro se cacifará para peitar o Congresso e obrigará a oposição, para seguir viável, a levar tanto ou mais gente a sua próxima manifestação.
Ao contrário do que dizia João do Rio, a rua não tem uma só alma. Tem várias. Cedo ou tarde, uma delas tomará o corpo governamental. Seja qual for, não encantará a todos.
*Angela Alonso, professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É autora de “Flores, Votos e Balas”.
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