Sociólogo analisa o cotidiano brasileiro no livro 'Crônicas Para Jovens'
Ieda Lebensztayn* / O Estado de S. Paulo / Aliás
E aí, beleza? Expressão dos jovens, essa gíria condensa no substantivo “beleza” um cumprimento ou pedido de confirmação do interlocutor. Eis que, paradoxalmente, a palavra “beleza” se multiplica nas falas, porém seu sentido resta escondido ou banido do dia a dia. Já explico: este papo de jovens, cotidiano e beleza vem a propósito de uma bela edição recente da Global: Gilberto Freyre: Crônicas para Jovens.
De modo preciso e convidativo, Gustavo Henrique Tuna cuidou da seleção e organização dos textos e preparou aparatos – a apresentação sobre o gênero crônica, o prefácio, a nota biográfica e referências bibliográficas a respeito de Gilberto Freyre, além de informações sobre as crônicas escolhidas. Esse rico material desperta nos leitores jovens, como em todos que desejamos ter o espírito jovem, o interesse de conhecer melhor o sociólogo e escritor.
Em Percursos da Crônica, Gustavo Tuna delineia um histórico desse gênero textual no Brasil, emprestando do próprio assunto a combinação de objetividade e sutileza que marca seus melhores representantes.
Memorável a citação de Machado de Assis sobre a origem da crônica, que teria nascido da conversa entre duas vizinhas: a “debicar os sucessos do dia”, elas falam do calor, logo da roupa mais ensopada que as ervas do jantar, passam para as plantações do vizinho, daí para os amores dele. E essa expressão machadiana de 1877, o “debicar” os fatos cotidianos, traduz a forma prazerosa, leve e aguda, como a crônica é capaz de nutrir os fregueses.
Organizador de um volume de crônicas de Rubem Braga, Gustavo Tuna conhece bem o gênero e seu potencial poético, de fazer enxergar mais significados nos fatos miúdos. Escreveu notas a De menino a homem, de Freyre, bem como o livro Gilberto Freyre: entre tradição e ruptura.
Nascido no Recife, Pernambuco, em 1900, Gilberto Freyre se bacharelou nos Estados Unidos nos anos 1920, onde também defendeu o mestrado Social Life in Brazil in the Middle of the 19th Century, embrião de Casa-grande & Senzala: Formação da Família Brasileira Sob o Regime da Economia Patriarcal (1933). Destacam-se, entre muitas obras, Região e Tradição (1941), título cujos substantivos sintetizam uma das ênfases da perspectiva do sociólogo; Perfil de Euclides e Outros Perfis; e Cartas Provincianas, trocadas com Manuel Bandeira, organizadas por Silvana Moreli Dias.
Nove inéditas em livro, de O Cruzeiro e do Diário de Pernambuco, as 26 Crônicas para Jovens, de 1921 a 1977, estão organizadas em cinco seções temáticas: Conservar é Preciso, Alimentação como Identidade, Em Defesa do Mundo Natural, Histórias da Infância e A Cidade e Seus Encantos.
Com sua formação singular, Freyre aliou conhecimento cosmopolita e valorização da cultura regional, destacando a mistura étnica da sociedade brasileira; e considerava diários, cartas, relatos de viajantes estrangeiros como fontes, sobressaindo a interdisciplinaridade de seu pensamento. Na crônica que abre o livro, de 1923, é incisiva sua defesa da história, da cultura: “Há um prêmio a que o Brasil deve concorrer na próxima exposição internacional. É o de devastador do passado. Devastador das próprias tradições”. Pela preservação da vida e contra estereótipos, em A Propósito de Ar Poluído denuncia a um tempo a industrialização nociva ao ambiente e aos operários explorados e a visão estreita do cientificismo dogmático.
Recomendo em especial a seção Histórias da Infância, aberta a diálogos por exemplo com ensaios de Walter Benjamin e com o poema “O mundo do menino impossível”, de Jorge de Lima. Caixas de charuto são casas, as de fósforo carros, miolos de pão viram bichos: povoando a solidão de Freyre menino junto com livros e desenhos, os objetos feitos brinquedos alimentaram a imaginação e a capacidade de observação do futuro escritor e sociólogo, que nos mostra a importância dos brinquedos para formar pessoas criativas, pacíficas, éticas.
No desejo de Freyre de conservar os nomes antigos de ruas, além do gosto pela tradição e lirismo, descobre-se a história com seus sofrimentos naturalizados. O nome Chora Menino vem da Setembrizada de 1831: o saque da cidade pelos soldados fez sempre se ouvir na campina o choro das crianças ali sepultadas.
Assim, a crônica de Gilberto Freyre desentranha do cotidiano várias faces da história de sua cidade, do país, do mundo, deixando-nos ver a poesia, violências e sofrimentos humanos. Patentes e invisíveis em toda rua e guardadas num nome de rua, lá estão as lágrimas de um menino. E então, em guerra, a arte as reúne num choro capaz de se comunicar com toda a gente, como no Sentimento do Mundo de Drummond de Andrade: “Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua,/ longe um menino chora, em outra cidade talvez,/ talvez em outro mundo”, “E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando”. E aí, beleza?
*Ieda Lebensztayn é crítica literária, com pós-doutorado na USP. Autora de ‘Graciliano Ramos e a novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis’
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