O sociólogo italiano veio ao Brasil para lançar o livro 'Uma Simples Revolução' e concedeu entrevista ao 'Estado'
Carlos Eduardo Entini / O Estado de S.Paulo / Aliás
O sociólogo italiano Domenico de Masi já nos propôs o ócio criativo e agora, em seu último livro, propõe uma revolução, sem pólvora, sem sangue. Mas com novos entendimentos. O principal deles é que vivemos em um sociedade pós-industrial na qual o trabalho é menos necessário para se produzir riqueza e é mais intelectual do que braçal. Consequentemente há o aumento do tempo livre. Portanto, o desemprego, que veio para ficar, é uma questão estrutural e deve ser encarado de outra forma: o trabalho “deve ser redistribuído, como deve ser a riqueza”, explicou De Masi na conversa que teve com o Estado quando visitou São Paulo este mês. Se assim fosse, prossegue o sociólogo, nascido na comuna de Rotello há 81 anos, todos os desempregados estariam ocupados imediatamente.
Parece tudo tão simples, certo? Pois para De Masi é assim que tem que ser, porque “o papel do intelectual é transformar as coisas complexas em coisas simples”. É esse o esforço do livro Uma Simples Revolução, recém-lançado no Brasil. Em 81 capítulos, De Masi trata de uma miríade de assuntos, mas sempre com o mesmo objetivo: dar ao leitor um panorama de onde estamos e como aqui chegamos. Segundo o autor, o momento em que vivemos não é o melhor mundo possível, mas certamente o melhor até hoje.
Além da redistribuição do trabalho reduzindo a carga horária, a simples revolução viria com o trabalho à distância, a maior presença de mulheres no mercado e de investimentos em todas “as tecnologias possíveis para libertar o homem do trabalho, sempre produzindo mais riquezas”. E, por outro lado, entender que o ócio é produção. Exercê-lo, explica De Masi, é fazer três coisas ao mesmo tempo: trabalho, produzindo riquezas; estudo, produzindo conhecimento e divertimento, produzindo bem estar.
Leia trechos da conversa:
Ensino superior
O problema hoje no mundo não é o PIB, mas a taxa de diplomados. Por exemplo, na Califórnia existem 66%; na Itália, 23%. Portanto A Itália é um país subdesenvolvido em relação à Califórnia. O problema hoje é como ter maior número do formados, porque a láurea hoje é como a quinta série de 100 anos atrás. Na sociedade pós-industrial é o título mínimo. Porque o diploma não serve só para trabalhar, serve para entender o telejornal, a política, saber como educar os filhos, entender a vida do cidadão.
Ócio criativo
A causa da globalização é sobretudo a causa do progresso tecnológico. Conseguimos produzir sempre mais, trabalhando sempre menos. Na Itália, em 1891, éramos 30 milhões e trabalhamos 70 milhões de horas. Em 2018, 61 milhões trabalharam 40 milhões de horas. E produzimos 20 vezes mais. Isso é o que em economia se chama jobless growth (crescimento sem trabalho). O primeiro problema: aumenta o tempo livre. Os nossos bisavós, trisavós viviam 300 mil horas e trabalhavam 150 mil. Hoje vivemos 700 mil e trabalhamos, no máximo, 80 mil.
Essa é uma situação rara, não se tem o que fazer. Aumenta o tempo de ócio e ele se torna produção. Nós produzimos enquanto estamos no ócio. Por exemplo, se eu assisto à TV, há um aumento de audiência e cresce a publicidade. Nosso ócio agora é produção. O segundo problema é como mudar o trabalho. Na época de Marx, em Manchester, 94% dos trabalhadores eram operários braçais. Hoje, são 33%. Portanto, não somente foi reduzida a quantidade de trabalho, mas o que permaneceu é predominantemente intelectual. O trabalho intelectual, diferentemente do braçal, se caracteriza em trabalhar, aprender e se divertir. Esse é o ócio criativo.
Trabalho de desempregado
Um desempregado trabalha mais do que um empregado. Porque para conseguir comer à noite deve fazer mil coisas para ter o mínimo de comida. O desempregado é o trabalhador mais intenso que existe. Ninguém trabalha como os desempregados, eles fazem os trabalhos que nós evitamos, carregam malas, são babás, lavam pratos. Porém os desocupados não têm um lobby, esse é o problema.
Desemprego
O desemprego é uma construção social. Podemos ter todos os desempregados ocupados imediatamente. Por exemplo, um alemão trabalha 1.400 horas ao ano, em média. A ocupação é de 79%. O desemprego é de 3,8%. Na Itália trabalhamos 1.800 horas ao ano, veja que loucura! Os italianos trabalham 400 horas a mais que os alemães! E temos 58% de ocupação e 11% de desemprego. Se na Itália trabalhássemos 1.400 horas não existiria nenhum desempregado. O desemprego é uma construção social, não é uma fatalidade. Na Alemanha, com 1.400 horas, se produz 20% a mais que na Itália e, portanto, paga-se salários 20% maiores. E isso [redução das horas trabalhadas] incentiva a produtividade e ela se incentiva a si mesma.
Hoje na Itália, finalmente, apresentamos um projeto de lei, do qual também participei, sobre a redução do trabalho para 34 horas semanais. Mas na Alemanha, desde 1 de janeiro deste ano, os metalúrgicos trabalham 28 horas e tiveram um aumento de 4,2% no salário. Isso porque a Alemanha entendeu quando menos se trabalha, mais se produz.
Empresas
A empresa é a instituição mais atrasada que existe no mundo. São mais evoluídos o exército e a igreja do que a empresa. A empresa ficou com a mentalidade de Taylor e Ford em quase todo o mundo. Por exemplo, o papel da mulher nas empresas é ainda um papel de subordinada, enquanto na sociedade o papel da mulher é muito mais paritário. Não é ainda totalmente paritário, mas tem mais paridade na família e na sociedade do que na empresa. Outro exemplo é o trabalho à distância.
A maioria dos trabalhadores é formada por intelectuais. Os trabalhadores físicos não podem ir para casa, porque se trabalham na linha de montagem devem ir à fábrica. Os trabalhadores intelectuais trabalham com a informação e graças à internet se recebe informação em qualquer lugar. Portanto, é totalmente inútil que um jornalista vá à redação para trabalhar. Pode trabalhar de casa. É totalmente inútil que milhares de pessoas saiam de manhã de casa, andem quilômetros, gastem gasolina, gastem dinheiro, poluam, tenham acidentes mortais para fazer no escritório aquilo que poderiam fazer em casa.
Portanto, toda a organização do trabalho das empresas é ainda feita sob a base da fábrica, da linha de montagem que não existe mais. O resultado qual é? São Paulo, o maior manicômio do mundo. Porque as pessoas saem de casa de manhã para outro lugar. E todos poderiam trabalhar de casa, do bar ou de onde quiserem. O trabalho à distância é a revolução mais simples. Como é a situação de São Paulo hoje? Metade da cidade é vazia de dia, nesse momento existem milhares de apartamentos vazios porque os moradores estão no escritório. E metade da cidade é vazia à noite. Portanto é um manicômio onde os loucos se movem de uma parte a outra sem saber o porquê.
‘Síndrome de Clinton’
Os chefes, de qualquer nível, não querem mudar [para o trabalho a distância]. Eu chamo ‘Síndrome de Clinton’. Quem que não queria a estagiária longe da Casa Branca? Clinton. Cada chefe quer os dependentes abaixo de si. Entretanto existem países inteiros que vivem sob o trabalho à distância, como Holanda e Suécia. Na Itália, 5% trabalham à distância. Se em São Paulo 10% trabalhassem à distância, não existiriam problemas de tráfego. Não custaria nada e todos estariam mais felizes.
Redistribuição do trabalho
Os desocupados devem lutar pela redução de horário de trabalho. Não existe nenhuma outra solução para o desemprego. O trabalho deve ser redistribuído como deve ser a riqueza. Não é possível que no Brasil existam ricos e pessoas que morram de fome. Não é possível que no mundo existam 8 pessoas que tenham a riqueza da metade da humanidade. Uma disparidade que nunca existiu no mundo, um homem só que tem a riqueza de 10 estados. Warren Buffett tem sozinho a riqueza do Canadá. Lutem pela distribuição de trabalho, que dela também vem também a distribuição da riqueza. Reduzam o horário de trabalho, porque isso aumenta a produtividade. Empregados, aceitem a redução de horário de trabalho. Primeiro porque isso não reduzirá o salário. Segundo, porque aumentará o tempo livre. Terceiro, aumentando o tempo livre, aumentará a felicidade.
Índios e o homem pós-moderno
Como eram as vidas dos índios? Dissemos que pelo jobless growth se trabalhará sempre menos e haverá sempre mais bem-estar. Essa era a situação dos índios, sobretudo dos índios nas zonas quentes do Brasil.
Eles não tinham necessidade de roupas, de trabalhar para comer, bastava pescar ou caçar. Portanto eles eram como o novo homem pós-moderno, tinham que trabalhar pouco, como um metalúrgico alemão que trabalha 28 horas semanais. Eu creio que um índio trabalhava ainda menos semanalmente. O que fazia um índio no resto do tempo?
Eles se dedicavam acima de tudo à contemplação da natureza, porque eles dizem que existem três níveis na natureza: a floresta, que é a divindade, depois os animais e o homem. E eles tinham uma contínua contemplação da relação entre esses três. Depois tinham o problema de conservar a cultura de sua tribo, ou seja, contar aos outros, aquilo que hoje é um romance, as coisas que aconteceram antes, os mitos. A mais importante expressão era a estética. Qualquer parte do corpo era pintada, qualquer item que carregavam era belíssimo, qualquer presente que se fazia devia ser perfeito, porque a estética era a alma do ser humano. Como a estética era sublime, não podia ser feita num muro, numa folha, deveria ser feita sobre o corpo da pessoa amada e deveria morrer junto ao corpo.
Essa é uma visão de vida que eu espero que se torne a visão pós-industrial. O maior tempo livre pode significar drogas, violência, porém pode se transformar nisso que podemos aprender com os índios.
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