- Folha de S. Paulo / Ilustrada
Conservadores e progressistas precisam uns dos outros para sobreviver
Haverá uma crise do conservadorismo? A revista The Economist, em edição recente para ler e guardar, acredita que sim.
Acredita bem. Quando olhamos para a Europa, onde estão os partidos conservadores tradicionais? Não estão. Desapareceram na França ou na Itália. Diminuiram de tamanho e influência na Alemanha ou na Espanha. E qual foi a razão para esse eclipse?
O crescimento e a ascensão de uma “nova direita”. Explica a Economist: o conservadorismo tende a ser pragmático, desconfiado das grandes mudanças, antiutópico e avesso a líderes carismáticos ou a cultos de personalidade.
A “nova direita”, pelo contrário, é fortemente ideológica; apresenta uma vocação revolucionária mais própria de jacobinos ou bolcheviques; e segue o primeiro messias que aparece na paisagem, indiferente a questões de civilidade ou caráter. E como foi que essa crise do conservadorismo apareceu? A Economist apresenta duas razões.
Em primeiro lugar, o declínio do conservadorismo tradicional acompanhou o declínio dos “pequenos pelotões” de que falava Edmund Burke, como a religião ou a família.
Em segundo lugar, a crise financeira de 2008 e as aventuras militares no Afeganistão e no Iraque foram o descrédito dos velhos partidos de direita, acusados de cupidez ou irresponsabilidade. Para a
revista, a crise do conservadorismo será longa.
Concordo com o diagnóstico. A “nova direita”, ou uma parte substancial dela, foi tomada de assalto pela mais antiga metástase do conservadorismo: o espírito reacionário.
Por espírito reacionário, entenda-se: uma mentalidade radical, muito semelhante à mentalidade revolucionária, e que pretende recusar o presente na sua totalidade (um presente que se percepciona como inapelavelmente corrupto) para construir uma nova ordem política, social ou moral purificada.
A situação não é nova. Como lembra a revista, é até bem velha: a reação à Revolução Francesa não produziu apenas a crítica “liberal” de Burke, mas também as respostas radicais de Joseph de Maistre, para quem a França deveria regressar a 1788. E, já no século 20, o conservadorismo metastizou-se no fascismo e no nazismo (e no franquismo e no salazarismo).
Só discordo da Economist num ponto fundamental: não é apenas o conservadorismo que está em crise. O liberalismo, no sentido progressista do termo, conhece uma crise igual.
Para ficarmos nos países citados pela revista, a esquerda tradicional desapareceu da França ou da Itália, e também perdeu força na Alemanha ou na Espanha.
E, tal como sucede com a “nova direita”, a “nova esquerda” também repudiou a herança da esquerda tradicional. Basta ver como as classes trabalhadoras do Reino Unido, da França ou da Itália, já para não falar dos Estados Unidos, votaram nas eleições mais recentes. Exato: entregaram os seus votos a Nigel Farage, Marine Le Pen, Matteo Salvini ou Donald Trump.
A “nova esquerda”, em gesto tão revolucionário como os revolucionários da “nova direita”, abandonou os seus eleitores e os seus princípios —e tornou-se individualista, narcísica, capturada pelos dramas minoritários (e, por isso, eleitoralmente irrelevantes) da “identidade”.
Não é por acaso que o ensaísta Mark Lilla, depois de dedicar um livro ao pensamento reacionário (“A Mente Naufragada”), escreveu outro sobre a crise da esquerda americana (“O Progressista de Ontem e o do Amanhã”).
Nas palavras de Lilla, a revolução individualista de Ronald Reagan na década de 1980 pôs um ponto final no programa cívico inaugurado pelo New Deal de Franklin Roosevelt. Essa revolução foi tão profunda que desfigurou até a própria esquerda, infectando-a com o vírus do egocentrismo tribalista.
Vivemos uma era de extremos —e, mais importante, uma era em que os extremos se alimentam mutuamente. Isso significa que as crises do conservadorismo e do liberalismo só podem ser ultrapassadas quando as respetivas ideologias regressarem ao seu elemento normal, saudável, racional.
Para os conservadores, isso significa a recusa do utopismo reacionário e a revalorização do realismo e do ceticismo políticos. Para os progressistas, a recusa do tribalismo identitário e o retorno à base social de apoio que a “nova esquerda” desertou.
Ironia: as duas ideologias que nasceram com a modernidade precisam uma da outra para sobreviver.
*João Pereira Coutinho, escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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