terça-feira, 9 de julho de 2019

Carlos Andreazza: O Supremo lavajatista

- O Globo

A Polícia Federal ainda não esclareceu: Glenn Greenwald, do site Intercept, está sob investigação? A resposta é importante porque dirá a quanto estamos do estado policial. A explicação dada até aqui — cuja ambiguidade compõe um método intimidador — é alarmante: “A PF não confirma tal solicitação e não se manifesta sobre eventuais investigações em andamento”.

Se circula a notícia de que o órgão do Estado responsável por apurar crimes federais teria instaurado um procedimento contra um jornalista, e se tal consiste em afronta a um direito fundamental, aquele expresso no artigo 5º da Constituição, a única manifestação aceitável seria uma que negasse — com energia —a existência da inquirição.

Não aprecio o jornalismo de Greenwald, limitado por sua militância, nem a forma como o Intercept oferta o conteúdo sob seu controle, a conta-gotas, como num folhetim, e reativamente, algo que é apanágio do discurso político-partidário. Mas: não há crime na prática —e só isso ora interessa.

Os abusos sobre as liberdades individuais costumam ter a história facilmente identificável, daí por que pergunte: como medir o pulso do ambiente intimidatório que contaminou o país sem se lembrar do inquérito autoritário, estabelecido de ofício e sem objeto definido, por meio do qual Dias Toffoli, presidente do Supremo, formalizou estarmos todos sob suspeita, o que, objetivamente, logo resultaria em censura à revista “Crusoé”?

A repercussão do imbróglio Intercept mapeia o drama brasileiro —qual seja: se um togado pode extrapolar, se um procurador pode, todo mundo pode. Roberto Barroso — aquele que autorizou uma investigação permanente contra um presidente da República, e por crimes supostamente havidos antes de seu mandato — está indignado com o que considera “uma clara violação de comunicação privada”. No caso, entre procuradores e, particularmente, entre um deles, Deltan Dallagnol, e Sergio Moro. O ministro — aquele que autorizou a quebra de sigilo bancário de um presidente não porque houvesse elementos para tanto, mas porque era preciso encontrar alguma coisa —tem razão em se incomodar com o que parece mesmo ser obtenção ilegal de conteúdo particular.

Mui preocupada com essa ocorrência, e zelando pela segurança de Moro e dos procuradores, a PF — aqui, sem qualquer dubiedade —investiga a invasão e o vazamento de dados privados; mas, atenção, sem se deter na análise das conversas em si, sobre se ali haveria o cometimento de algum ilícito por autoridades. Gostaria de questionar Barroso sobre se a PF pode cuidar da provável ação criminosa de roubo de mensagens, no entanto negligenciando a perícia acerca da autenticidade do conjunto e o exame de seu teor? A PF não incorreria em disfunção ao não solicitar os celulares dos procuradores que supostamente participaram dos diálogos?

Gostaria, aliás, de perguntar a Barroso, o mais afiado entre os justiceiros do STF, sobre se vê alguma impropriedade no conteúdo das conversas até aqui reveladas. Teria curiosidade em saber como o ministro avalia a conduta de Moro conforme apresentada nos diálogos. Teria Barroso, cuja vocação para advogar é espantosa, uma opinião sobre se o ex-juiz tomou lado no processo relativo a Lula.

As mesmas questões caberiam a Edson Fachin, aquele que, de acordo com Dallagnol em mensagem a procuradores, “aha uhu!”, seria deles. Rodrigo Janot talvez tenha pensado o mesmo sobre o ministro quando, por ocasião do acordo de delação dos irmãos Batista, teve no juiz um despachante. Pergunto a Fachin, mestre em homologações exóticas: quantas vezes, no período de negociação dos termos de um acordo, um delator pode reformar sua delação? Quantas vezes poderá ser impreciso, omisso ou mentiroso, até que ofereça a verdade aceita pelo Ministério Público? Sem qualquer restrição, o sujeito, um criminoso confesso em busca de se aliviar, pode ajustar a entrega —numa espécie de obra em permanente construção —até alcançar o que será a verdade segundo procuradores, só a partir de então, à espera da canetada que homologa (e liberta), tendo compromisso com a própria palavra? É isso?

Estamos frente ao dilema moral de uma sociedade enfeitiçada pelo lavajatismo: vale tudo em nome da missão prendedora de corruptos? Barroso, por exemplo, é da escola Bolsonaro de estado de direito, aquela que, diante de controvérsias legítimas sobre atos que põem em xeque o devido processo legal, resolve qualquer dúvida entrando no gramado do Maracanã para ouvir a voz das ruas. Ou não será o ministro o formulador da tese — alicerce da cultura plebiscitária em que aposta o bolsonarismo e síntese do espírito do tempo jacobinista que ergue mitos e heróis —segundo a qual o Supremo se deslegitimará se repetidamente frustrar o sentimento social?

É o STF que chama o cabo e soldado.

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