sábado, 13 de julho de 2019

Míriam Leitão: A desigualdade e as mulheres

- O Globo

Se a ideia é a de que a Previdência compense as mulheres pela dupla jornada, o que se fez é legitimar a dupla jornada

Num país com enormes desigualdades, os benefícios para todos sempre criam mais desigualdades. Se o país decide que todas as mulheres terão idade mais baixa do que os homens para se aposentar, isso beneficia mais as mulheres que têm mais renda. Quando são usados argumentos paternalistas para defender as mulheres, o que está acontecendo é o mesmo machismo de sempre. Se a ideia é a de que a Previdência compense as mulheres pela dupla jornada, o que estamos fazendo é legitimando a dupla jornada.

Só pode haver um objetivo em relação às mulheres: combater desigualdades e isso não se faz compensando-as com dinheiro público como se todas as mulheres fossem iguais entre si. Políticas compensatórias só são aceitáveis quando são para reduzir desigualdades de renda ou de classe social. Elas são boas quando focadas nos mais pobres.

Uma empregada doméstica trabalhará até os 62 anos para se aposentar. Uma policial federal até os 52. Uma empregada que trabalhe na casa de uma policial vai trabalhar dez anos mais do que a patroa. Se for um casal de policiais, ela vai trabalhar nove anos a mais do que o patrão. Houve na reforma a introdução desse tipo de injustiças e incluídas por pressão do presidente, com o apoio da esquerda.

As mulheres não são iguais, porque o país é muito desigual. Elas enfrentam problemas comuns na discriminação, mas de intensidade bem diferente. O desemprego é maior entre as mulheres, como também entre os negros. A mulher negra tem a maior taxa de desemprego. O que se deve é combater a discriminação e o preconceito no mercado de trabalho, a misoginia na sociedade, a violência contra a mulher. E não determinar que a Previdência vai compensar a mulher dando alguns anos a menos de trabalho.

Quando se discutiu internamente a reforma, o presidente Bolsonaro queria que a idade de aposentadoria da mulher fosse 60 anos ou menos. Alguém acha que Bolsonaro, por tudo que ele já fez e falou de grosseiro e abusivo sobre mulheres, seja um defensor das mulheres? Evidentemente ele estava achando que elas precisam se aposentar mais cedo porque acredita que é papel delas cuidar dos filhos e dos trabalhos domésticos. Ou seja, pela sua conhecida visão machista do mundo. Coube a uma mulher, a economista Solange Vieira, mostrar para ele que atualmente as mulheres que se aposentam por idade, ou seja, as mais pobres, têm em média 61,5 anos. As que se aposentam mais cedo são as de maior renda e que utilizam o sistema do tempo de contribuição.

Na Previdência, há inúmeras desigualdades a combater. E é sobre elas que a esquerda deveria conversar. Mas a maior parte dos parlamentares dos partidos que se definem como esquerda simplesmente se nega a olhar com cuidado o problema do tratamento injusto dentro da Previdência. Por isso os casos dos dissidentes dos partidos de esquerda são tão auspiciosos. A nova geração, de Tábata Amaral e Felipe Rigoni, pode arejar essa visão de mundo.

A esquerda é contra a reforma porque é contra o governo, mas também porque a proposta afetou os benefícios das corporações que sempre defendeu. Os deputados que falavam tanto nos pobres se alinharam a ninguém menos que Jair Bolsonaro na hora de defender os policiais e dar a eles o inadmissível privilégio de não apenas se aposentar 12 anos antes — se for homem— como também o de receber pelo resto da vida o último salário acrescido de todos os aumentos dados de quem está na ativa. Isso tudo será pago pelo conjunto da sociedade.

As pessoas que serão atingidas pela idade mínima não serão os pobres, mas sim as que aposentam mais cedo hoje por terem trabalho regular, carteira assinada, uma vida de maior renda e maiores possibilidades. No serviço público, por muitos anos pessoas vão se aposentar com renda que pode superar R$ 30 mil. São os que têm direito à paridade e à integralidade e que na tramitação tiveram tantos defensores à esquerda e à direita e conseguiram regras de transição mais suaves.

Hoje, 47% da renda previdenciária vão para os 15% mais ricos. Para combater desigualdades num país assim é preciso entender os caminhos do dinheiro público. Para combater os preconceitos contra a mulher é preciso rejeitar o velho truque de se mudar alguma coisa para tudo permanecer igual.

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