Filósofo russo-francês foi professor de Raymond Aron, Merleau-Ponty, Eric Weil, André Breton, Georges Bataille e Jacques Lacan
Martim Vasques da Cunha* | O Estado de S. Paulo
Ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, o filósofo russo (naturalizado francês) Alexandre Kojève acreditava que ser um homem do pensamento era a melhor qualificação para governar um país. Ele defendia o fato de que os membros que faziam parte desta “República das Letras” gozavam de alguma vantagem sobre os “não iniciados” (e os políticos faziam parte desse grupo) no que diz respeito às questões de governo.
Esse é também o argumento principal da mais recente biografia sobre esta figura enigmática do mundo intelectual europeu – The Black Circle: A Life of Alexander Kojève, de Jeff Love (Columbia University Press, 352 páginas), publicada este ano. Contudo, não se trata de uma biografia tradicional ou de algo mais palatável. O livro de Love – tradutor para o inglês das obras de Kojève e professor de russo e alemão na Universidade de Clemson, na Carolina do Sul – é muito mais a meditação sobre uma vida puramente intelectual que, com calma, preparou a sua influência derradeira no mundo prático da política, como se fosse um círculo sombrio a se expandir infinitamente, do centro para a periferia, do subsolo da sociedade para o topo da elite do poder.
The Black Circle parte da perturbadora suposição de que a busca pela sabedoria e a busca pelo poder absoluto sempre caminharam de mãos juntas na história da humanidade. Segundo Kojève, o filósofo (que não deve ser confundido com o sábio) e o tirano (que não é semelhante ao bom governante, mas pode se tornar um) são reflexos simétricos na luta por um reconhecimento entre os dois, cujo término acontecerá apenas quando chegar a um fim em que não teremos mais qualquer espécie de sabedoria, muito menos qualquer espécie de controle sobre os seres humanos. Neste combate, o filósofo leva a vantagem porque tem “três traços distintivos” em contraste com o resto da sociedade.
O primeiro traço é que “o filósofo é mais experiente na arte da dialética ou discussão em geral: ele vê melhor que o seu interlocutor ‘não iniciado’ as inadequações do argumento do último, e sabe melhor como tirar o máximo partido dos seus próprios argumentos e como refutar as objeções dos outros”. Já o segundo é que, com a arte da dialética, o filósofo consegue se libertar de “preconceitos em maior medida do que o ‘não iniciado’: ele está assim mais aberto para aquilo que a realidade é, e é menos dependente da forma como os homens, em determinado momento histórico, a imaginam ser”. E, por último, mas não menos importante, uma vez mais aberto para as sutilezas do real, o amante da sabedoria “aproxima-se mais do concreto que o ‘não iniciado’, que se confina em abstrações, sem, porém, se aperceber do seu caráter abstrato ou até irreal”.
Jeff Love não se aprofunda muito no passado factual do russo, mas sabe-se, graças a uma biografia mais aprazível, de autoria de Dominique Auffret, que Alexander Vladimarovich Kojevinikov, nascido em 1902, fazia parte de uma família nobre de Moscou e, por causa da Revolução Russa, emigrou para a Polônia (onde ficou preso por suspeita de espionagem), depois para a Alemanha (onde sobreviveu vendendo joias contrabandeadas e escrevendo sua dissertação de mestrado sobre Vladimir Soloviev, orientada por Karl Jaspers) e, finalmente, Paris, em 1926. Lá, perdeu o que restou da sua fortuna familiar na crise de 1929, mas graças a Alexandre Koyré, famoso historiador de ciências, foi indicado para substituí-lo numa série de palestras em que ele comentaria a Fenomenologia do Espírito (1807), de G.W.F. Hegel, na prestigiada École Pratique de Hautes Études, entre 1933 e 1939.
Foi quando Kojève – até então um ignorante sobre a filosofia hegeliana – encontrou o seu “sábio”. Para ele, o que Hegel descobriu foi a lógica da história humana. O centro dessas conferências, publicadas em 1948 com o nome de Introdução à Leitura de Hegel, era que o motor das nossas ações seria a luta pelo reconhecimento entre um senhor e um criado, nunca por honra ou amor – e ambos a exigir um do outro uma espécie de nova autoconsciência. Segundo Mark Lilla, em A Mente Imprudente, “essa luta ocorre entre indivíduos, classes e nações; também é encenada religiosa e intelectualmente, projetando os homens servilmente conceitos transcendentes do Divino e do Bem para se deixarem dominar por eles, e em seguida derrubarem eventualmente esses ídolos na ânsia de autoafirmação. Mas todas essas escaramuças são apenas parte da luta humana global, que tem um objetivo supremo: a satisfação do nosso desejo de reconhecimento como iguais”.
Com uma pitada de Karl Marx e outra de Martin Heidegger, Kojève recriou Hegel a seu modo. E foi a violência da sua interpretação que fascinou o pequeno grupo de alunos que seguiu as palestras até o fim, ocorrido enquanto Hitler invadia a Checoslováquia. Esses “não iniciados” transformaram-se em “iniciados” – de Raymond Aron a Merleau-Ponty, passando por Eric Weil até André Breton, para terminar com Raymond Queneau (responsável pela transcrição e pela publicação definitiva do curso), Georges Bataille e Jacques Lacan.
Contudo, a influência de Kojève na filosofia ocidental não parou por aí. Ela também se estendeu na vida política. Durante a 2.ª Guerra Mundial, ele morou em Marselha, mas depois voltou a Paris com o fim do conflito e, por causa do livro sobre Hegel, tornou-se o filósofo dos filósofos. Ficou descontente com a vida contemplativa e conseguiu, via dois alunos menos famosos – os burocratas Robert Marjolin e Olivier Wormser –, um cargo como assessor no departamento de relações econômicas internacionais no Ministério das Finanças da França. Foi nesta atribuição que Kojève se tornou um dos arquitetos do tratado que seria o documento fundador da Comunidade Econômica Europeia (hoje União Europeia) – o chamado Tratado de Roma, ratificado em 1957 –, que defendeu até a morte, ocorrida subitamente enquanto proferia um discurso em Bruxelas, em 1968.
O que parecem ser duas vidas – a do filósofo e a do político – passam a ser vistas como uma única trajetória quando sabemos que seus amigos mais íntimos o apelidavam, talvez a sério, talvez por brincadeira, de “a consciência de Stalin”. De fato, era um comunista empedernido (em 1999, o Le Monde divulgou, sem provas, que ele poderia ter sido um espião da KGB), mas com suas idiossincrasias. Sendo fiel ao seu sábio Hegel, a união entre a busca da sabedoria e a busca pelo poder absoluto terminaria não só com o fim da filosofia, mas também com o fim da história. Conforme explicou a Leo Strauss em 1950, isso aconteceria quando o “Estado universal e homogêneo” administrasse a raça humana – o que seria a súmula da bondade suprema pois “nem a guerra nem a revolução podem ser concebidas dentro dele”. Nessa igualdade coercitiva que existiria graças a um tirano esclarecido, “no estado final não há naturalmente mais ‘seres humanos’ no nosso sentido de um ser humano histórico. Os autômatos ‘saudáveis’ estão ‘satisfeitos’ (com desporto, arte, erotismo, etc.) e os ‘doentes’ são trancados. Os que não estão satisfeitos com as suas ‘atividades sem propósito’ (arte, etc.) são os filósofos (que podem obter a sabedoria se ‘contemplarem’ o suficiente). Ao fazê-lo, tornam-se ‘deuses’. O tirano torna-se um administrador, um dente de engrenagem na ‘máquina’ formada pelos autômatos para os autômatos”.
Anos depois, quando o americano Francis Fukuyama desenvolveu a mesma tese no polêmico O Fim da História e o Último Homem (1992), o nome de Kojève voltou à baila, sendo registrado como seu principal inspirador – e podemos ver as pegadas dele nos escritos de Michel Foucault, Alexandre Dugin (ideólogo de Vladimir Putin) e até mesmo no historiador Yuval Noah Harari. Em 2004, estudiosos desenterraram um ensaio inédito do russo, Esboço de uma Doutrina da Política Francesa, escrito em 1945, e que divulgava as ideias acima apenas com uma linguagem mais elegante – e mais persuasiva. Ou seja, o filósofo realmente ensinou aos políticos como se praticava a arte de governar. E assim Alexandre Kojève criou as condições para um governo do futuro em que o círculo negro do subsolo filosófico transformou para sempre a nossa vida em uma única e homogênea aflição.
*Martim Vasques da Cunha é autor dos livros ‘Crise e utopia – o dilema de Thomas More’ (Vide Editorial, 2012) e ‘A poeira da glória – uma (inesperada) história da literatura brasileira’ (Record, 2015)
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