A defesa da soberania nacional: Editorial | O Estado de S. Paulo
O inciso I do artigo 1.º da Constituição coloca a soberania como o primeiro dos fundamentos da República. Ou seja, o Estado deve ser soberano tanto no exercício do poder dentro do território nacional, por meio da elaboração e da aplicação das leis, como na relação com outros Estados, que deve se dar sempre de forma altiva, isto é, sem sujeitar o País a interesses estrangeiros. É dever constitucional do chefe de Estado pôr-se à frente da defesa da soberania nacional, seja ajudando a preservar a ordem interna e o Estado de Direito, seja protegendo os interesses brasileiros no exterior. Em nenhuma dessas dimensões, a soberania será bem resguardada se o chefe de Estado agir de forma autoritária e imprudente, como tem feito o presidente Jair Bolsonaro, em especial no que diz respeito à preservação da Amazônia.
É fato que a gritaria internacional em torno da suposta escalada na devastação da floresta amazônica embute muitos interesses de países europeus cujos produtores agrícolas concorrem com o poderoso agronegócio brasileiro – e o dano à imagem do País tem o potencial de minar a competitividade brasileira no exterior, num mercado cada vez mais sensível a questões ambientais. Assim, faz bem o governo brasileiro ao ressaltar que nem todas as críticas ao modo como o Brasil lida com suas florestas são desinteressadas.
Mas é preciso reconhecer que a atual crise foi deflagrada por atitudes intempestivas a respeito do meio ambiente, adotadas irrefletidamente pelo presidente Bolsonaro e alguns de seus ministros. Para começar, Bolsonaro implodiu o Fundo Amazônia, bancado por Alemanha e Noruega, sob o argumento de que financiava ONGs – organizações que, segundo o bolsonarismo, estão a serviço de uma grande conspiração da esquerda internacional contra o Brasil. Em seguida, chamou de “mentirosos” os números do Inpe que mostraram, em julho, um avanço significativo do desmatamento na Amazônia, e ainda acusou a direção do respeitado órgão de estar “a serviço de alguma ONG”. Mais recentemente, ante a proliferação de queimadas na região amazônica, Bolsonaro acusou as ONGs de causarem os incêndios “para chamar a atenção para a minha pessoa”.
Como era previsível, as atitudes do presidente tiveram péssima repercussão internacional, mas Bolsonaro manteve o tom nada diplomático, fazendo referências jocosas, próprias do ambiente insalubre das redes sociais, aos governantes da Alemanha, da Noruega e da França, que o haviam criticado. Entrementes, os incêndios na Amazônia tornaram-se assunto de grande interesse, mobilizando artistas e celebridades globais. Nessa onda, o presidente da França, Emmanuel Macron, disse que se trata de uma “crise internacional” e informou que o G-7 (grupo dos sete países mais ricos do mundo) discutirá o assunto – sem a presença do Brasil. Já o governo da Finlândia, que detém a presidência rotativa da União Europeia, pediu que o bloco discuta a possibilidade de banir a importação de carne brasileira. No Twitter, o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que “não podemos permitir mais danos a uma fonte importante de oxigênio e biodiversidade”.
Mesmo que ainda não se saiba realmente se as queimadas desta temporada são mais graves do que as de anos anteriores, o estrago à imagem do Brasil já está feito – e é imenso. Jair Bolsonaro, em apenas oito meses de governo, conseguiu arruinar a reputação do País em uma das poucas áreas nas quais se destacava de maneira razoavelmente positiva graças aos esforços na preservação das florestas nativas. Essa imagem não será recuperada enquanto o presidente continuar a se queixar da “mentalidade colonialista” da França, ou o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, acusar países de usar ONGs “para atingir nossa soberania”, ou ainda o chanceler Ernesto Araújo dizer que “muitas forças nacionais e internacionais querem recolonizar o Brasil”. Se o governo realmente estivesse preocupado com a defesa da soberania nacional, estaria empenhado em esclarecer a opinião pública internacional sobre a verdadeira situação na Amazônia e o que está sendo feito para enfrentar o problema em suas reais dimensões. Ao preferir ofender a inteligência de todo o mundo civilizado, o governo Bolsonaro apenas desmoraliza o Brasil.
A alienação do STF: Editorial | Folha de S. Paulo
Magistrados ignoram restrição fiscal ao vetar redução de jornada e salários
A grave crise orçamentária enfrentada por estados e municípios não bastou para convencer o Supremo Tribunal Federal a facilitar o ajuste de despesas com pessoal, o principal motivo do descontrole das finanças dos entes federativos.
Em julgamento na quinta-feira (22), a corte formou maioria para declarar inconstitucional o artigo da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que prevê a possibilidade de reduzir temporariamente a jornada de trabalho e, de forma proporcional, os salários dos servidores.
Isso ocorreria, conforme o diploma, quando a despesa com pessoal superasse o teto de 60% da receita. Em 2018, 12 estados ficaram em desacordo com esse limite.
Seis magistrados votaram contra o corte de vencimentos, mas dentre eles a ministra Carmén Lúcia optou por aceitar apenas a redução de jornada. Outros quatro decidiram a favor dos termos da LRF.
Com a ausência de Celso de Mello e a potencial inconsistência a partir do voto divergente, o presidente do STF, Dias Toffoli, encerrou a sessão sem concluir o julgamento.
Embora ainda seja possível que ministros alterem seus votos, parece improvável a alteração de placar. O desfecho é lamentável, pois os argumentos em favor de conferir a prerrogativa de ajustar jornada e salários são pertinentes.
A Constituição, afinal, já permite exoneração de servidores sob determinados critérios. A flexibilização, longe de afrontar a Carta, se encaixaria como uma solução intermediária para o ajuste das contas. A Advocacia Geral da União calculou economia potencial de R$ 38 bilhões nos estados.
Ao fechar esse caminho, o STF deixa aos gestores públicos apenas a opção mais drástica e controversa. Difícil acreditar que governadores terão disposição e força política para demitir funcionários.
Ainda há chance de salvar alguma coisa no julgamento. Outro dispositivo fundamental da LRF em apreciação pelo tribunal prevê a possibilidade de redução de repasses do Executivo aos outros Poderes no caso de frustração da receita.
Hoje, na esfera estadual, as despesas de Judiciário e Legislativo (incluindo tribunais de contas), além de Ministério Público, não são contingenciadas. Os sacrifícios recaem inteiramente sobre o Executivo, desincentivando a responsabilidade dos demais.
Neste item, o julgamento está empatado em 5 a 5. Os votos contrários, de forma geral, se ancoram na tese de autonomia dos Poderes, que seria comprometida pela redução de repasses. Parecem ignorar que existe uma realidade —a da escassez de recursos.
O Judiciário em geral e o Supremo em particular dão mostras frequentes de que não levam em conta as restrições orçamentárias, cada vez mais severas. A conta dessa alienação já recai hoje sobre a parcela da população que mais depende dos serviços públicos.
É essencial avançar no saneamento: Editorial | O Globo
Investimento necessário supera em muito orçamento estatal, e parceria com setor privado é a alternativa
A Câmara prevê votar até a segunda quinzena de outubro uma nova legislação para investimentos em saneamento básico. O ponto de partida está na consolidação de propostas apresentadas na última década sob a forma de nove projetos de lei e três Medidas Provisórias já analisadas pelo Senado.
É boa notícia. Trata-se, essencialmente, de eliminar no século XXI resquícios de um Brasil ainda emoldurado no século XIX: são 110 milhões de pessoas sem acesso à infraestrutura de coleta de esgotos e 35 milhões sem dispor de água potável.
As crônicas deficiências no saneamento básico afetam as famílias mais pobres. A coleta de esgotos, por exemplo, alcança apenas um de cada quatro domicílios onde a renda familiar soma no máximo meio salário mínimo mensal (cerca de R$ 500). Os dados oficiais sobre saúde populacional indicam a média de 6 mil mortes anuais como resultado da indisponibilidade de infraestrutura de saneamento.
No horizonte das finanças estatais não se enxerga a menor possibilidade de esse quadro trágico vir a ser superado apenas com recursos públicos. Estima-se necessidade de US$ 175 bilhões em investimentos, o equivalente a R$ 700 bilhões, para a universalização dos serviços de saneamento nos próximos 15 anos. É um volume de dinheiro cinco vezes maior, por exemplo, que o déficit previsto nas contas do governo federal neste ano.
O orçamento setorial caiu pela metade nas últimas quatro décadas. No período mais recente, a maior parte do dinheiro publico disponível continuou onde estava, sem uso, por deficiência nos projetos estaduais e municipais. Ano passado, 41% dos recursos federais foram usados de forma concentrada — captados por empresas de saneamento que não precisavam deles, porque têm acesso garantido ao mercado de capitais, onde poderiam suprir suas necessidades de financiamento.
As empresas públicas estão financeiramente exauridas. Raras são lucrativas. Entre as dez maiores, nove gastam mais da metade de sua receita operacional com a folha salarial. Na média, operam com 60% de perdas no abastecimento de água.
A alternativa é uma parceria entre setores público e privado, baseada em regras claras que estimulem a competição, qualifiquem a regulação e viabilizem os ganhos de escala na prestação de serviços.
Essa é a equação política que o Legislativo precisa resolver ainda neste ano para que o país, enfim, consiga emergir do século XIX.
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