sexta-feira, 30 de agosto de 2019

César Felício*: Bolsonaro, entre a cruz e a espada

- Valor Econômico

Fraquejada pode gerar oposição à direita

Na brecha que se abre entre o bolsonarismo e o lavajatismo, situações há pouco tempo inimagináveis começam a ganhar concretude. Estudiosa há seis anos do perfil dos manifestantes de rua no Brasil, a antropóloga Isabela Kalil, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp) identificou no domingo traços de que ganha corpo um núcleo que está à direita de Jair Bolsonaro.

Sim, no universo ultraconservador brasileiro, há os que pensam que o presidente não é radical o suficiente. Isabela já havia apontado a existência deste núcleo nos últimos meses, em entrevista à repórter Carolina Freitas publicada no Valor no mês passado. Ele ganhou um desenho mais nítido com a sequência de acontecimentos nas últimas semanas que levaram o presidente a reduzir notavelmente seu nível de atrito com o presidente do Supremo Tribunal Federal e com os presidentes das casas legislativas, em um contexto em que Sergio Moro foi enfraquecido com a perda do Coaf e a intervenção branca na Polícia Federal.

As manifestações do domingo foram mais discretas do que as anteriores. Não foram registradas em todos os Estados, como as demais, por exemplo, mas em 21 deles. A vertente anti-institucional, a favor do fechamento do Supremo e da tal intervenção militar constitucional, lá estava. O grupo de faixa etária mais baixa, menos ideologizado e centrado na veneração do "mito" teve representação menor.

Uma parcela importante de quem ficou na rua até agora defende mais ideias e não uma pessoa. A sanção presidencial do projeto de lei de abuso de autoridade, que deverá vir acompanhada de alguns vetos, ganha assim importância direta na engrenagem bolsonarista.

A líder do governo no Congresso, Joice Hasselmann, estava certa quando comentou que Bolsonaro está "entre a cruz e a espada". Ou desautoriza o Congresso e provoca uma reação institucional, ou desagrada sua base. E a base mais radical não se contenta com o veto parcial de dez itens que está sendo tentado por Moro no Planalto. Quer o veto integral. Como o Congresso demonstrou anteontem ao analisar uma questão relativamente banal, é fácil derrubar um veto de Bolsonaro.

Joice não esclareceu, na saída de sua conversa com o presidente anteontem, quem é a cruz e quem é a espada. Mas há um risco concreto de uma parte da militância ultraconservadora, a que pede com mais vigor CPI da Lava-Toga, impeachment de ministros do Supremo e um jacobino no comando da PGR, pense que o presidente deu uma fraquejada. A decisão presidencial tem potencial para descolar a ala mais radical das ruas da defesa de Bolsonaro.

Caso o bolsonarismo vá para um lado e o lavajatismo para o outro, este último conta com capacidade maior de agregar boa parte do anti-institucionalismo. Ainda que não congregue toda a fauna, como prova a campanha do adeptos do polemista Olavo de Carvalho contra o coordenador da força-tarefa da Lava-Jato, Deltan Dallagnol, estigmatizado como "um ativista de esquerda, do estilo Psol".

A justificativa para o ataque lustra a biografia de Dallagnol, frequentemente acusado de ter adotado viés político na condução das investigações: o procurador é acusado pelos olavistas justamente de não ter feito isso.

"O lavajatismo não é por si só mais radical do que o bolsonarismo, o que ele tem é uma pauta contra a corrupção que dialoga com estes grupos", comenta Isabela. Parte do ultraconservadorismo já está pintada para a guerra contra o Supremo em função de questões outras, como a decisão deste ano que criminalizou a homofobia.

A diminuição da presença de manifestantes mais jovens, que parece explicar porque os atos do dia 25 foram tão esvaziados, intriga a pesquisadora. "Este fato pode ser indicativo tanto de perda de apoio entre os jovens, quanto da constatação de que o público presente se mobiliza mais pela pauta anticorrupção do que necessariamente pelo apoio ao presidente. Ao defender posições que apresentam discordâncias com Bolsonaro, os manifestantes se mostram mais lavajatistas do que bolsonaristas", arriscou Isabela, em um texto síntese que preparou sobre os atos de domingo.

Amazônia
A crise na Amazônia irrompeu na semana passada às vésperas da mobilização do domingo, e não surtiu, portanto, todo o impacto que poderia ter tido na opinião pública que se expressou no fim de semana. Bolsonaro foi rápido em se apropriar da bandeira nacionalista, explorando ao máximo o contraponto com o presidente da França e evitando, deste modo, discutir o problema concreto: qual a razão dos aumentos dos focos de incêndio, como contê-los, a quem responsabilizar.

O tuíte de Macron em que o presidente francês anunciou que a Amazônia seria tema de debate na cúpula do G-7 foi publicado no dia 22. Um levantamento do site "Agência Pública" mostra que o governo vinha fazendo uma disputa pelo controle da narrativa do desastre nas redes sociais desde o dia 19, quando a tarde se fez noite em São Paulo, em parte devido à fumaça de queimadas. Reportagem da agência, citando dados da consultoria AP Exata mostra que as menções negativas sobre a Amazônia cresceram entre os dias 20 e 21. O "notre maison brûle" de Macron no dia 22 marcou o início de uma virada de jogo a favor de Bolsonaro nas redes. A confiança superou o medo e a tristeza como emoção dominante a partir desta data.

Macron é um antagonista adequado para fazer a bandeira nacionalista render. Trata-se do chefe de Estado de um país que é uma potência colonial até hoje, no limiar da terceira década dó século 21. A Guiana Francesa nos faz fronteira.

O nacionalismo é um caminho conhecido para interditar debates, o que levou à exasperação o governador do Pará na reunião com presidente, terça-feira. "Estamos perdendo muito tempo com o Macron. Temos que cuidar do nosso país e tocar a vida", disse Helder Barbalho.

Nas últimas horas, a discussão torta recebeu o aditivo de 'fake news' nas redes, mencionando até um suposto envenenamento do ministro do Meio Ambiente por ecoterroristas no combo. Cala fundo no terraplanismo político e pode atenuar o desgaste que traz a Bolsonaro uma política ambiental que é a negação de si mesma.

*César Felício é editor de Política.

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