Escalada da desigualdade|| Editorial / O Estado de S. Paulo
Pelo 17.º trimestre consecutivo a desigualdade de renda cresce no Brasil. Trata-se do ciclo mais longo da história do País. Segundo o Índice de Gini, o indicador mais reputado na matéria, o crescimento da desigualdade entre 2014 e 2019 seguiu um ritmo similar ao da queda entre 2001 e 2014, um período histórico de redução da desigualdade. É o que demonstra o estudo Escalada da Desigualdade, coordenado pelo professor Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas.
Desde o início da crise, a perda de renda média acumulada foi de 3,71%. Mas, como mostra a pesquisa, os efeitos da recessão econômica foram muito piores que o mero empobrecimento geral da nação. Isso porque os pobres empobreceram bem mais que a classe média, ao mesmo tempo que os menos ricos enriqueceram um pouco mais e os muito ricos enriqueceram muito mais.
Entre 2015 e 2017 a população de pobres – isto é, das pessoas que vivem com menos de R$ 233 por mês – aumentou de 8,3% para 11,1% da população total, cerca de 23 milhões de pessoas. São 6,2 milhões de brasileiros que caíram na linha da pobreza.
Além disso, a metade mais pobre da população experimentou perdas da ordem de 17,1% em sua renda. A classe média, que segundo os padrões estatísticos corresponde à faixa dos 40% intermediários da população, teve perdas de 4,16%. Já os 10% mais ricos, isto é, a classe média alta, apresentou ganhos de 2,55%. Por fim, o 1% de mais ricos teve ganhos acima dos dois dígitos: 10,11%.
Para piorar, não só os pobres perderam mais renda, mas, dentre eles, os que mais sofreram foram os menos instruídos e, sobretudo, os jovens – de todos os segmentos sociodemográficos, o mais depauperado. Entre os jovens de 20 e 24 anos a perda de renda foi de 17,76%. Entre os analfabetos foi de 15,09%. Além disso, também tiveram redução de renda pelo menos duas vezes maior que a da média geral os moradores das Regiões Norte (13,08%) e Nordeste (7,55%) e as pessoas de cor preta (8,35%). Entre os grupos menos favorecidos, o único que teve aumento de renda foi o das mulheres (2,22%), enquanto os homens perderam em média 7,16% de sua renda. O diferencial feminino, segundo a pesquisa, é ter mais escolaridade, um fator decisivo para a manutenção ou incremento da renda neste período recessivo.
Sem dúvida nenhuma, a principal alavanca para o crescimento da desigualdade e para a queda do poder de compra das famílias brasileiras foi a escalada do desemprego, que, como se viu, afetou especialmente os jovens e menos escolarizados. Como revelam os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o desemprego de longa duração, ou seja, o daqueles trabalhadores que buscam uma vaga há mais de dois anos, nunca foi tão alto, atingindo 3,347 milhões de brasileiros. Neste cenário, aumenta também a taxa de desalento, isto é, a daqueles desempregados que já desistiram de buscar uma vaga. Hoje já são quase 5 milhões.
Todos estes dados são particularmente trágicos, pois mostram que, mesmo numa eventual retomada do crescimento econômico, com consequente aumento nas ofertas de emprego, aqueles que terão mais dificuldade de se reinserir no mercado e restabelecer sua renda são justamente os jovens e os menos instruídos: os primeiros por terem menos experiência e os segundos por terem menos qualificação.
Ante este cenário, fica claro que meros programas de retomada econômica, mesmo se bem-sucedidos, não serão suficientes para sanar as desventuras de uma população cada vez mais pobre e desigual. Será necessário suplementar as medidas gerais com mecanismos específicos de reintegração dos mais afetados. Além de revigorar programas de apoio à subsistência, será preciso investir tempo, recursos e esforços na capacitação daqueles cada vez mais marginalizados no mercado de trabalho. A não ser assim, mesmo havendo crescimento econômico, ele não será suficiente para vencer a pérfida progressão da desigualdade.
Abuso na lei || Editorial / Folha de S. Paulo
Vai à sanção do presidente texto que pune excessos cometidos por autoridades
Teve longa gestação no Congresso o projeto de lei que endurece punições fixadas para abusos de autoridade,finalmente aprovado na quarta (14) e enviado ao presidente Jair Bolsonaro (PSL) para sanção.
Idealizado como resposta ao avanço da Lava Jato e aos excessos cometidos por juízes e investigadores, ele hibernou por muito tempo até ganhar a forma atual.
A operação acabara de completar o primeiro ano quando o Ministério Público apresentou um pacote de medidas legislativas para reforçar o combate à corrupção, em 2015.
Embalada pelo apoio popular que recebeu, a proposta endurecia a legislação penal e restringia o acesso a garantias oferecidas pela Constituição para proteção dos indivíduos contra abusos do Estado.
Sentindo-se acuados pelo avanço das investigações, os políticos atiraram o pacote num limbo legislativo e passaram a articular diversas iniciativas para frear a operação, sem que elas prosperassem.
O texto aprovado nesta semana é o primeiro a vingar. Ele define como crimes várias condutas que cruzam os limites estabelecidos pela legislação para a atuação de policiais, promotores e juízes.
Prender sem motivo, usar algemas sem necessidade, constranger pessoas a depor e divulgar gravações que exponham sua intimidade são algumas das ações tratadas como passíveis de punição —até quatro anos de prisão, mais multa.
Muitas dessas condutas já são vedadas pela legislação e pela jurisprudência dos tribunais, mas os defensores da nova lei acham que somente as penas definidas agora poderão de fato coibir desvios.
Ao expor desvios bilionários e punir políticos e empresários poderosos, a Lava Jato ganhou força quando usou a lei para alcançar seus objetivos —e expôs fraqueza sempre que ignorou esse limite.
Alguns dispositivos do projeto, no entanto, estabelecem critérios tão subjetivos para a avaliação das condutas a serem reprimidas que podem criar riscos também.
Um dos mais duvidosos prevê punição para juízes que decretarem prisões “sem conformidade com as hipóteses legais”, definição tão imprecisa que pode servir até para enquadrar ações legítimas.
Os críticos do projeto temem que ele seja usado para intimidar os servidores que cumprem a lei, gerando impunidade em vez de inibir os que andam fora da linha.
Bolsonaro tem sido pressionado a vetar vários artigos da proposta aprovada pelo Congresso. Seus aspectos mais controversos certamente serão levados ao exame do Supremo Tribunal Federal.
Não custa lembrar que, se o presidente sancioná-la, a aplicação da nova lei dependerá do Ministério Público e do Poder Judiciário —e caberá a seus integrantes ter o bom senso necessário para evitar os perigos apontados pelos críticos.
Vetos necessários na lei contra abuso de autoridades || Editorial / O Globo
Armadilhas para agentes do Estado precisam ser desarmadas em projeto, que depende de sanção do presidente
Assim como a burocracia, o abuso de autoridade é um costume deletério, antirrepublicano, na sociedade brasileira. O emperramento dos cartórios e controles criados pelo Estado para supostamente formalizar e legalizar atos entre pessoas físicas e jurídicas estão sendo enfrentados pela medida provisória da “liberdade econômica” , em tramitação no Senado. Já um projeto coma finalidade de punir abuso de autoridades está à disposição do presidente Bolsonaro, para sancioná-lo na íntegra ou definir vetos pontuais —a melhor alternativa para o país.
Ao contrário das medidas antiburocracia, o conjunto de ações contra autoridades que excedem seu poder está no centro de intensa polêmica. A própria forma como este projeto começou a tramitar no Senado contaminou a iniciativa de suspeições. Cabe lembrar que o desengavetamento desta proposta de lei, depois recauchutada, coube ao então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), alvo de investigações sobre corrupção.
Renan fazia parte de um grupo de peemedebistas coroados em cujo encalço estava a Lava-Jato: Romero Jucá, Edison Lobão e outros. É ilustrativa a conversa gravada entre eles, incluindo o ex-presidente Sarney, em que se fala sem dissimulações da necessidade de conter a Operação. Uma troca de ideias entre eles foi gravada pelo ex-tucano, e delator premiado, Sérgio Machado, apanhado pela Lava-Jato em negociatas quando dirigia a Transpetro, subsidiária da Petrobras, no período em que a estatal foi assaltada pelo esquema lulopetista de corrupção, nos governos Lula e Dilma.
A iniciativa de Renan de recolocar em andamento no Senado um antigo projeto para coibir abuso de autoridades, devidamente atualizado — com Roberto Requião, peemedebista alinhado ao PT, na relatoria —, chamou a atenção.
Coibira ação de autoridades no Brasil não é ideia ruim, em si. A legislação sobre a matéria é antiga, necessita ser atualizada. Mas a origem do projeto afinal aprovado e remetido à sanção de Bolsonaro aconselha cuidados ao Planalto. Apesar de toda a depuração feita, devido a reclamações de juízes, promotores, policiais etc ., o texto aprovado traz pegadinhas contra o poder de investigação do Estado. Foram criadas com o uso de termos vagos, dúbios, genéricos, a serem explorados pelos bem pagos e competentes advogados de poderosos, para voltar-se ao tempo da clássica impunida dedos criminosos de colarinho branco.
Por exemplo, se for instaurado um procedimento criminal “sem justa causa fundamentada” agentes públicos podem ser processados. Mas o que é “justa causa fundamentada”? No mínimo, servirá para protelar processos. Outra armadilha: se o bloque iode bens for considerado em instâncias superiores excessivo, o juiz pode ser penalizado. Mas os donos de patrimônio bloqueado sempre reclamam da dimensão do bloqueio.
O dispositivo tem clara intenção de atemorizar juízes e promotores. Tenta se fechar o cerco contra a Lava-Jato e operações anticorrupção em geral.
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