- Folha de S. Paulo
Brasil e Argentina avançam rumo à pior crise bilateral em décadas
Com o colapso da candidatura de Mauricio Macri na eleição primária argentina do domingo, o governo Jair Bolsonaro topou com uma encruzilhada. De um lado, abriu-se o caminho do pragmatismo. Nele, o presidente se distanciaria de Macri e daria o benefício da dúvida à chapa Alberto Fernández-Cristina Kirchner. Mais ainda, o Brasil tentaria ampliar os incentivos para que Fernández se afaste do receituário kirchnerista.
Por exemplo, Brasília poderia defender publicamente a viabilidade do acordo Mercosul-UE, mesmo com a mudança no poder em Buenos Aires. Ou, privadamente, oferecer-se como facilitador do diálogo com o governo Donald Trump, caso Fernández dê uma guinada ao centro.
Na segunda-feira, já ficara claro que enveredávamos por outra rota. De um palanque em Pelotas, o presidente profetizou que o Rio Grande do Sul seria uma “nova Roraima”, tomado por refugiados argentinos, com a vitória da “esquerdalha”.
Na quarta, enquanto Macri parecia jogar a toalha na Argentina, Bolsonaro avançou no confronto aberto. Falando de improviso no Piauí, referiu-se aos prováveis novos governantes como “bandidos de esquerda”.
Não é difícil adivinhar o que nos aguarda no fim desse caminho: a pior crise entre Brasil e Argentina desde os anos 1980, quando as duas ditaduras iniciaram um processo de aproximação estratégica, o qual foi elevado a um patamar econômico e político inédito após as respectivas transições democráticas.
Há dois meses, ao visitar a Casa Rosada, Bolsonaro já havia declarado apoio a Macri na disputa —uma quebra de protocolo sem precedentes na história recente da diplomacia brasileira, feita também com Trump na Casa Branca. Mas o caminho da guerra ideológica não estava traçado de antemão.
No caso da China, por exemplo, o governo Bolsonaro claramente abandonou a retórica de campanha em benefício dos laços comerciais e de oportunidades de investimento. A ala militar do governo, a começar pelo vice-presidente Hamilton Mourão, e o Ministério da Economia persuadiram o presidente a recuar. Em outubro, Bolsonaro chega a Pequim com uma relação bilateral razoavelmente preservada.
Com a Argentina, conter a cruzada ideológica bolsonarista é mais difícil. Nos discursos dessa semana, Bolsonaro repetidamente citou os laços do kirchnerismo com PT, Chávez, Maduro e Fidel. O mito do Foro de São Paulo é muito mais poderoso no imaginário do bolsonarismo do que a suposta ameaça chinesa.
Ainda assim, a alternativa pragmática foi sempre uma possibilidade. O boliviano Evo Morales, afinal, esteve na posse de Bolsonaro e disputará, como favorito, sua reeleição na semana anterior ao primeiro turno na Argentina. O governo brasileiro não toca no assunto, e as relações Brasília-La Paz vão bem, obrigado.
Falta vontade ou poder —ou ambos— para generais e economistas conterem o presidente. “Quando o Brasil precisou da Argentina para crescer?”, cutucou Paulo Guedes. Fontes do governo disseminam na imprensa que o Brasil deixará, de facto ou de jure, o Mercosul se a Argentina se “rekirchnerizar”.
Entre promessas de diálogo com o FMI e críticas à Venezuela, Fernández passou a semana enviando sinais calculados. Sobre os ataques vindos de Brasília, decretou: “Não vou mais responder ao Bolsonaro, porque a união com o Brasil é muito mais importante do que Bolsonaro”. É o caminho do pragmatismo, saindo de Buenos Aires.
*Roberto Simon é diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e em relações internacionais pela Unesp.
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