- Folha de S. Paulo
É da natureza do direito estabelecer que nem tudo o que a política ambiciona é válido
Uma das estratégias básicas dos novos autocratas, que se espalham ao redor do mundo, é capturar as instituições jurídicas e submetê-las aos seus objetivos. Diferentemente das ditaduras dos anos 1970 ou das anteriores, constituições não são mais rasgadas, parlamentos e tribunais fechados.
Porém, pela substituição de autoridades jurídicas, estrangulamento de mecanismos de controle e pela edição de decretos e atos administrativos de questionável validade, a ordem constitucional vai sendo subvertida.
O objetivo é desqualificar a democracia liberal, a proteção dos direitos de minorias vulneráveis e, sobretudo, daqueles que são apontados como inimigos da nação. É o que se convencionou chamar de legalismo autocrático.
No Brasil temos testemunhado, até o presente momento, um comportamento independente do Parlamento e dos tribunais, impondo limites a diversas iniciativas hostis à democracia e os direitos, como ocorreu na derrubada da medida provisória que permitia o controle governamental sobre as organizações da sociedade civil, a transferência da Funai para o Ministério da Agricultura ou o Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura.
Nas próximas semanas o presidente terá que indicar o novo ou a nova procuradora-geral da República. Trata-se de uma peça fundamental no sistema de defesa da Constituição.
O presidente já manifestou, em mais de uma ocasião, que procura alguém que não seja identificado com as questões indígenas, da defesa do meio ambiente ou o direito das minorias.
Muitos dirão que essa é uma prerrogativa constitucionalmente atribuída ao presidente. Ele escolhe quem quiser. As coisas não são tão simples assim.
O fato de o presidente ter discricionariedade não significa que ele possa fazer qualquer escolha. Sua obrigação é optar por aquela que melhor atenda a função a ser preenchida, não aos seus interesses.
De acordo com a Constituição, incumbe ao Ministério Público “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, o que inclui a proteção dos direitos fundamentais das minorias e do meio ambiente, além da obrigação de “defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas” (artigo 127 e 129 da Constituição Federal).
Logo, não se pode escolher alguém contrário às atribuições da instituição que chefiará.
Essa pode parecer uma observação trivial e mesmo pueril, pois o presidente tem todos os incentivos para escolher alguém que não lhe atrapalhe os planos. É da natureza da política. Mas também é da natureza do direito estabelecer que nem tudo o que a política ambiciona é válido, sob o risco de vermos ameaçadas nossas liberdades.
Ao Senado Federal caberá a responsabilidade de apreciar a escolha presidencial. Assim como terá que fazê-lo, em breve, em relação a diversas indicações do Executivo, inclusive em relação ao Supremo Tribunal Federal.
Trata-se de uma função relevantíssima, que o Senado não deve negligenciar. Embora possa parecer tentador para alguns senadores ter um procurador-geral omisso, isso não é um bom negócio, pois aumentará o custo político do legislador em colocar, diariamente, limites a um Executivo agressivo aos valores constitucionais.
Entregar a indicação do procurador-geral para aquele que deverá ser por ele fiscalizado, de fato, não foi uma boa decisão da Constituição de 1988, mas isso é assunto para uma outra coluna.
O que importa agora é reduzir os riscos de avanço do legalismo autocrático.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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