'A gente tem boleto para pagar e criança pra alimentar’, diz Stepan Nercessian
Após emocionante desabafo no Grande Prêmio do Cinema, protagonista de ‘Chacrinha’ conta como viveu sete meses sem emprego, período em que escreveu ‘A arte de pedir — Guia prático para inadimplentes e negativados’
Maria Fortuna || O Globo / Segundo Caderno
Ao ganhar o troféu de melhor ator por seu papel no filme “Chacrinha: O velho guerreiro”, no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro , na última quarta-feira, Stepan Nercessian fez um desabafo que expôs um paradoxo. Revelando que havia ficado sete meses desempregado, mostrou que prêmio não significa que o ator está, necessariamente, por cima da carne seca e que a profissão vai muito além do glamour. Aos 65 anos e 49 de carreira (que somam mais de 100 trabalhos na TV, no cinema e no teatro), ele reflete, nesta entrevista, sobre os altos e baixos da carreira. Conta também que fez do período de desemprego uma limonada, escrevendo dois livros: “A arte de pedir — Guia prático para inadimplentes e negativados”, de “alta ajuda”, como define; e “Garimpo de almas”, seu romance de estreia.
• Por que fez questão de chamar atenção para os trabalhadores da cultura em em seu discurso?
As pessoas têm feito bullying com a gente. Como se vivêssemos no mundo da lua. Trabalhar fabricando sonhos não significa que não temos os pés no chão. Ignoram que a gente tem família, boleto para pagar, criança pra alimentar. Tudo na vida do ator é provisório,dependemos da efervescência da indústria para ter trabalho. Ator até se vira, mas é muita gente no cinema, mães de família... Quis passar um olhar humano sobre essa indústria. Nós somos trabalhadores como todos, não podemos continuar sendo massacrados. Parem de se referir à gente com um bando mamando na teta do governo. Exigimos respeito!
• Foi eleito melhor ator e estava sem trabalho há meses. Prêmio não significa estar por cima...
O primeiro filme que fiz, tinha 14 anos. De lá pra cá, lutei contra todas as adversidades do cinema brasileiro. O massacre do cinema americano, o som ruim... Nunca deixamos de ouvir as críticas e fomos nos aperfeiçoando. Sei que nunca teve muita gente a nosso favor, a não ser o público. Passei de 2016 a 2018 sem um dia de folga. Em 2019, parou. Sei que a nossa profissão envolve um glamour grande, há a impressão de que nadamos no dinheiro. Precisava dizer que a gente também passa perrengue. Fiz questão de romper com isso, não quero manter a pose. Mexe com a autoestima da gente não estar sendo requisitado, amado. Sou o melhor ator do cinema brasileiro de 2018, mas junto com 18 milhões de brasileiros, acabei de experimentar o amargor do desemprego.
• Marcos Oliveira, o Beiçola de ‘A Grande Família’, pediu emprego essa semana...
Muitos colegas me escreveram dizendo que lavei a alma de todos. Dá para ver quanta gente está sentindo o mesmo. Não fiz para causar, mas para expressar meu sentimento. O desemprego para ator é pior do que para engenheiro, jornalista, que são recusados pelo currículo. No caso do ator, a matéria-prima do trabalho é ele próprio, são as emoções, os sentimentos. É uma rejeição absoluta. Quando se está no auge, encontra espaço para divulgar o que quiser, lojas querem te dar roupa, restaurante não te cobra. Na hora em que você mais precisa... Ninguém te chama para batizado, só para enterro. Agora, vou fazer um delegado na novela das 18h (“Éramos seis”). Para conseguir o papel, percorri todos caminhos de um jovem iniciante. Falei que estava sem trabalhar desde março. Temos que recomeçar todos os dias.
• Você se sente injustiçado?
Não responsabilizo ninguém. Talvez tenha valorizado mais coisa na minha vida do que a chamada carreira. Nunca deixei de viver como queria.
• Nunca abriu mão da sua liberdade, de beber cerveja no bar. Acha que isso pode ter afetado a imagem que as pessoas fazem de você?
Sempre busquei ser honesto comigo mesmo. Quebrei a cara, mas fui eu quem arrisquei todas as fichas. Nunca quis criar a ilusão de que artista é diferente dos outros. Vão te exigindo um tipo de comportamento, um cuidado com a imagem, com o que diz, aonde vai, com quem. Até beber virou crime, tipo “olha lá o vagabundo”. Uma vez, durante filmagem com o Roberto Talma, encostei no bar para tomar uma cerveja. Ele veio, encheu o próprio copo e disse: “Então é esse o Stepan que todo mundo diz ser um louco? Quanto tempo perdi com medo de trabalhar com você!”. As pessoas falam muito. Eu sou positivo, profissional, conhecido como o cara de quem nunca tocam a campainha. Sempre estou lá embaixo, esperando o motorista, com texto decorado.
• Já quis ser galã?
Quando fiz a novela da Janete Clair (“Duas vidas” ), ela disse: “Encontrei meu novo Francisco Cuoco”. Apareceram oportunidades. Por que não segui? Não sei. Fui apostando em outras coisas, sendo ator. Sou feliz, posso envelhecer em público. As pessoas vão envelhecendo junto comigo. Claro, quem não gostaria de ter ganhado mais dinheiro?
• Acha que o episódio com o Carlinhos Cachoeira (em 2012, o ator, na época deputado federal, recebeu R$ 175 mil do bicheiro. O inquérito foi arquivado pelo STF) afetou sua vida profissional e política?
Talvez. Quem viu de maneira negativa continuará vendo. Os fatos não vão modificar. Fiquei triste. Não havia nenhuma implicação com a minha vida pública ou corrução. Tenho amigos de diversas áreas, visito bicheiro e presos da Lei de Segurança Nacional na cadeia. Na ocasião (em queáudios foram divulgados ), estava falando com um amigo, dizendo “me empresta a grana que te devolvo depois”. No telefonema, dizia “manda uma grana que eu preciso contratar o Messi pro Botafogo”. Ele me emprestou, eu não precisei e ia devolver. O áudio gravado só mostrava eu pedindo a conta dele pra colocar o dinheiro, não mostrava eu pedindo o empréstimo.
• Depois de ser vereador e deputado, desistiu da política?
Temporariamente. Fiz minha parte. Fiquei na política até o momento em que acreditava. Nunca pedi um voto sem ter certeza de que faria algo. Desanimei, mas não entrei com aquela cara de “me chamaram para um convento e era um puteiro”. Sempre soube do universo que é. Mas não estava mais feliz.
• Você foi presidente da Funarte. Como avalia a atual política cultural?
Com preocupação. Como vereador, sempre dialoguei com todas as correntes de pensamento e acho que política cultural tem que expressar minorias e maiorias, sem discriminação. O Brasil tem que fazer filme sobre tudo, falar da sociedade, burguesia, corrupção, de santo. Temos um tambor com muitos ritmos. Me preocupa os ataques a setores que não comungam com as ideias do governo.
• Você é presidente do Retiro dos Artistas há 15 anos. Como é acompanhar de perto a vulnerabilidade humana. Você se projeta ali dentro?
Sempre brinquei que virei presidente para garantir a minha moradia (risos ). Não há como ficar alheio aos altos e baixos. Vejo que antiguidade não é posto. Mesmo. Eu encararia com tranquilidade se fosse necessário morar ali, mas acho que eu e minha esposa ( Desirée, com quem é casado há 32 anos ) daremos conta. Moramos com quatro crianças ( de 5, 10, 11 e 14 anos ), filhos de uma sobrinha nossa que sumiu na vida e deixou os pequenos. Me aposentei há quatro meses, com R$ 5,2 mil. Me deram os parabéns por ter conseguido esse valor, acredita? Para você ver o mundo em que estamos vivendo.
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