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Intervenção na PF, na Receita, escolha de procurador-geral chapa-branca e articulação contra CPI da Toga visam reduzir fiscalização de bolsonaristas no poder
Quase toda semana o presidente Jair Bolsonaro, um de seus filhos ou algum membro importante do seu séquito fala uma frase que coloca em questão o ideário democrático desse grupo político. Obviamente que há valores autoritários que alimentam a visão bolsonarista de mundo, mas é preciso admitir também que se trata de um projeto de poder que tem várias dúvidas quanto aos caminhos a seguir e com quem se aliar para atingir seus objetivos. No fundo, o bolsonarismo enfrenta um grande dilema: é possível articular a relação entre instituições políticas e mobilização social?
Embora Bolsonaro tenha desde o início de sua carreira política optado pela via eleitoral, ficando quase 30 anos no Parlamento, ele sempre teve uma relação atribulada com as instituições democráticas. Basta lembrar que ele propôs o fechamento do Congresso, o fuzilamento de um presidente (Fernando Henrique Cardoso) e se nunca se destacou no partido no qual ficou mais tempo. Era um membro do baixo clero que xingava o establishment e as práticas democráticas, mas que a cada quatro anos concorria ao posto de deputado federal.
As manifestações de junho de 2013 iniciaram um processo de enorme crítica ao sistema político estruturado desde a queda de Fernando Collor, ao que se somaram posteriormente a polarizada eleição de 2014, a Operação Lava-Jato, o impeachment de Dilma Rousseff e o governo impopular de Michel Temer. Foi neste contexto que Bolsonaro radicalizou sua aposta antissistema, organizando-se durante quatro anos com setores sociais que não estavam no jogo institucional. As redes sociais foram peça-chave nesse modelo mobilizador, mas também houve ação presencial feita em todo o país.
O bolsonarismo, ademais, ganhou o apoio na eleição presidencial de outros grupos que estavam nas ruas desde 2013. Tais organizações tinham em comum o fato de se declararem de direita e de lutarem contra o PT e a corrupção. Essa aliança ficou mais clara e forte no segundo turno, mas já apareceu em alguma medida desde o início, uma vez que uma parte dessas lideranças disputou postos eletivos pelo partido do presidente, como foram os casos de Joice Hasselmann e Carla Zambelli.
Aqui começa a transmutação e o dilema democrático de Bolsonaro e dos grupos que o acompanharam. Mais especificamente no caso do presidente, ele teve de escolher um partido para concorrer ao posto máximo da nação e, para quem não lembra, namorou várias legendas, inclusive com a possibilidade de fazer alianças com partidos mais tradicionais - aqueles que são dominados pela “velha política”. No fim das contas, ficou numa agremiação partidária menor, aliada a outra nanica, com a promessa de que dominaria o partido de cabo a rabo.
É um absurdo dizer que Bolsonaro não esperava ganhar as eleições. Uma visão como essa é ingênua ou subestima o sucesso político da estratégia bolsonarista em meio à crise do sistema político e ao fortalecimento do antipetismo. Outra coisa é afirmar que o bolsonarismo e seu líder maior não tinham a menor ideia de como governar o país e o desafio que enfrentariam para lidar com as instituições democráticas. Isso sim aponta o roteiro pelo qual temos passado nos últimos meses.
Discursos contra a “velha politica”, manifestações de rua, ações que realçam o líder solitário contra os poderosos, tudo isso e mais outras coisas vêm sendo utilizadas desde o início do mandato. Não obstante, o que salvou o governo atual de não ser abortado logo cedo foram os atores institucionais e algum grau de articulação com as instituições e seus atores-chave, seja para salvar o senador Flávio Bolsonaro de uma investigação maior, seja para evitar medidas contrárias ao governo.
Com a necessidade de fazer a máquina funcionar, de manter o poder da família - como na indicação do filho Eduardo para a embaixada nos Estados Unidos - e de evitar estragos maiores advindos do Parlamento, o presidente tem apostado cada vez mais numa articulação institucional ad hoc, caso a caso.
Essa estratégia é duplamente problemática. De um lado, porque insere-se de forma ambígua, quando não esquizofrênica, no jogo institucional. Permite que os senadores indiquem nomes para alguns cargos, que deputados sejam mais autônomos nas suas decisões, mas não cria um sistema estável de governança, que só poderia ser obtido com algum tipo de coalizão partidária.
E, por outro lado, mantem ainda um conjunto de ações e de discursos contra a ordem institucional e os grupos com maior poder de voto e veto no sistema presidencialista atual. É bem verdade que Bolsonaro cada vez menos consegue mobilizar a sociedade para manifestações de rua em seu apoio, mas ele ainda tem um exército bolsonarista nas redes sociais, em algumas igrejas evangélicas e em outros estratos corporativos (como caminhoneiros e policiais).
De todo modo, o fato é que os bolsonaristas estão com dificuldades de navegar em ambas as esferas de forma coordenada. Claro que a crise desse grupo político em relação à democracia tem um forte componente normativo. Basta lembrar que o bolsonarismo tem apoiado censura, perseguição a inimigos e outros comportamentos francamente autoritários. Porém, do ponto de vista do poder, o maior problema está em lidar com a dinâmica institucional juntamente com o modelo mobilizador que os congrega.
Dois exemplos realçam esse dilema. O primeiro é mais conjuntural e o segundo, estrutural, pois envolve como o presidente sairá das eleições municipais para enfrentar os desafios da segunda parte do mandato.
O primeiro dilema diz respeito à forma como Bolsonaro tem tentado evitar o peso das instituições de controle sobre seu governo e, especialmente, sobre o núcleo duro do poder - sua família e o séquito mais próximo. A intervenção na Polícia Federal e na Receita Federal, a escolha de um procurador-geral da República chapa-branca, bem como a articulação contra a chamada CPI da Toga são peças claras de um jogo destinado a reduzir a fiscalização sobre bolsonaristas no poder.
Para alcançar esse objetivo, cede-se algum poder aos que antes compunham o que Bolsonaro intitularia de “sistema”. Se Temer ou o PT estivessem fazendo isso, obviamente seriam chamados de corruptos ou algo pior pelos bolsonaristas. Complementarmente, abandona-se ou, no mínimo, se reduz a ênfase no discurso de limpeza do sistema político. Parte dos que apoiaram o presidente já perceberam essa mudança.
Disso pode resultar a redução do tamanho social daquele conjunto de apoiadores que foram decisivos na construção do sucesso eleitoral.
Afinal, por quanto tempo aqueles que chamaram o antigo (não o atual) Sérgio Moro de super-herói vão suportar o engavetamento geral de tudo aquilo que possa colocar em risco o núcleo duro do poder? O lavajatismo vai aceitar ser sepultado para salvar o bolsonarismo?
Esse dilema foi claramente constatado por Olavo de Carvalho, um dos gurus do bolsonarismo. Em vídeo publicado recentemente, ele disse que a politica, embora dependa das ideias, é fundamentalmente a escolha do grupo ao qual se pertence contra o inimigo que se quer vencer. Trata-se da definição de Carl Schmitt da política. Trocando em miúdos, o pensador radicado na Virginia avisou que o momento é de lutar pelo presidente Bolsonaro, o que pode significar abandonar alguns ideais pelo caminho, tudo em nome de um objetivo maior contido num projeto de poder.
Olavo de Carvalho percebeu que as contradições do governo Bolsonaro aumentaram e isso está levando a uma maior divisão dos grupos de direita que o apoiaram. Sua fala realça que não se deve agora abandonar o barco em nome de pruridos em torno da luta mais firme contra a corrupção. Os inimigos são outros, como o PT, a imprensa e a universidade. Contra estes e sua capacidade de internacionalizar os erros do governo, algo perigoso para a própria manutenção do projeto de poder, o fundamental é multiplicar os militantes bolsonaristas. Só uma coisa não ficou clara nesta proposta: esses militantes entrariam no PSL ou ficariam basicamente em organizações extrapartidárias para defender o presidente?
Surge aqui o maior dilema democrático do bolsonarismo. Ao longo do próximo ano haverá as eleições municipais. Historicamente, elas são o divisor de águas dos mandatos presidenciais. Se Bolsonaro tiver um resultado muito ruim ou apenas regular, seu projeto de poder começa a se enfraquecer no dia seguinte da contagem dos votos. Para evitar isso, ele precisa investir na organização do front eleitoral. Por enquanto, no entanto, o PSL é uma bagunça e o séquito mais próximo do mito-capitão só cria brigas com aliados. A direita bolsonarista tende a se transformar em mais de um grupo se não houver clareza quanto a objetivos e métodos de divisão do poder. Além disso, de que maneira a via institucional vai lidar com os que querem arregimentar uma militância extrainstitucional, quase revolucionária?
O mais espantoso no momento não são as frases antidemocráticas dos líderes bolsonaristas. Essas existem faz muito tempo. O que chama a atenção, de forma impressionante, é a enorme falta de articulação de ideias e de caminhos institucionais do bolsonarismo para as próximas eleições municipais. Caso não corrija esse problema, Bolsonaro não terá como se fortalecer nem pela rota das instituições nem pela via da mobilização social. E não adiantará depois reclamar da democracia.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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