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Lula e Bolsonaro parecem diferentes, mas são o eterno retorno ao mesmo, à reprodução sem inovação. Sísifo no esforço inútil de subir a montanha da história
Não há grande diferença, na forma que as demarca e limita, entre a orientação ideológica de Jair Messias e a de Luiz Inácio. Há entre elas diferenças, e outras serão reveladas com o passar do tempo e a consciência social e política de suas respectivas fragilidades governativas. Aquilo que não cabe no que deveria ser um governo propriamente dito.
Luiz Inácio via mais, mas a ideologia das certezas definitivas o fazia ver “torto”. Jair Messias também vê torto, mas vê menos, na incerteza errante de sua ideologia do inacabado e inacabável. O que os aproxima é que ambos têm como referência de suas visões de mundo o passado. Mas passados de cronologias diferentes.
O calendário de Luiz Inácio é pretensioso, começa no descobrimento do Brasil. O Brasil do “nunca antes neste país” é o nunca antes de quem governa olhando para trás, comparando-se com os instantes ultrapassados de um país que se transformou profundamente ao longo dos 500 anos de sua história. Nesse longo período histórico, Lula só vê o negativo de um país que, aparentemente, estava à espera da sua chegada ao poder para transformar os pobres em classe média. De certo modo, a religiosidade do próprio povo brasileiro o transformou em profeta que veio vingar as maldades e omissões do rei, do poderoso, do Estado. Coisa de um povo que ainda espera o retorno do rei dom Sebastião para salvá-lo.
O calendário de Jair Messias também é linear e destemporalizado. É o do contratempo, o do tempo sem história e sem historicidade, sem a premissa do futuro, o tempo de uma nota só. O do governante que governa em nome do passado, mas outro passado, mais curto. O do Brasil que deveria ter parado no término da Segunda Guerra Mundial e no começo da Guerra Fria. Não o Brasil da luta contra o nazismo e o fascismo, como na batalha de Fornovo di Taro, na Itália, a da rendição de uma divisão alemã inteira às tropas brasileiras. O Brasil que deu o sangue e a vida dos expedicionários da FEB, no sacrifício ritual dos combates pelos direitos do homem.
Muitos daqueles expedicionários adormeceram no silêncio da brisa da campina do cemitério brasileiro de Pistoia. Pedaço da pátria lá longe, onde ainda hoje tremula nossa bandeira, a bandeira da lembrança, não a bandeira do esquecimento da história, não a das mistificações ideológicas. Lá, o Brasil combateu a direita, que hoje aqui se exalta, combateu o genocídio bestial dos campos de concentração e dos fornos crematórios nos quais a condição humana foi transformada em cinzas.
O tempo do Brasil da era de Jair Messias é outro e curto, diverso do de Luiz Inácio, começa e acaba na Guerra Fria. É o da guerra ideológica, não a guerra de soldados de verdade em defesa da pátria e da condição humana. É o tempo da governação contra o passado antagônico ao que deseja, visto desde uma janela de quartel. De quem veio para vingar o que ele supõe ter sido o injusto fracasso do regime militar. Enche de generais a máquina do Estado, o que é interessante apenas na medida em que, no geral, os altos oficiais das Forças Armadas já não são os herdeiros tardios do tenentismo, os atores do golpe de 1964. O regime que então implantaram não teria feito o “serviço” completo, a repressão plena, o silenciamento absoluto das vozes das diferenças sociais, da pluralidade social e da consciência crítica e esperançosa. São os generais de outro momento da história, o da abertura política e da conciliação.
Até aqui, as falas e ações do governante vão no sentido de uma vontade de poder cujo objetivo é atrelar o futuro a um passado de quartel, aquartelar as novas gerações num presente sem futuro. O mesmo da guerra perdida num passado obscurantista e sem glória. Nas guerras sempre se perde, mesmo ganhando. Pelo que destroem, as guerras mudam as sociedades em nome das quais são feitas.
O Brasil que saiu do regime de 1964 não foi o Brasil que os militares quiseram criar. As iniquidades cometidas, como a tortura, a supressão de vidas, a prisão dos discordantes e dos opositores, apenas indicaram a estreiteza de visão dos vencedores. Como agora, combateram meros e inúteis rótulos para matar ideias que não conheciam. Tinham medo da liberdade, do cidadão, dos que trabalham e dos que pensam. Combateram não em nome da pessoa, mas pela precedência da riqueza privada, livrando-a da precedência da pessoa em relação à coisa.
Luiz Inácio e Jair Messias parecem diferentes, mas são o eterno retorno ao mesmo, à reprodução sem inovação. Sísifo no esforço inútil de subir a montanha da história, a de nossas adversidades sociais e políticas, para cair e reiniciar a busca sem fim. Ambos não sabem, mas são patronos de um Brasil que parte sempre e não chega nunca.
*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto).
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