- O Estado de S.Paulo
Discursos de presidentes brasileiros são ouvidos com frieza na ONU. Bolsonaro será exceção
Os discursos de presidentes brasileiros são ouvidos com frieza na ONU. É a abertura da sessão, quase uma formalidade. O de Bolsonaro tende a ser uma exceção. Não por suas qualidades oratórias, mas pelas circunstâncias que o cercam.
Leio que o tom do discurso será conciliatório, com ênfase na defesa da soberania. Um tom conciliador é sempre bem recebido. O próprio conceito de soberania nacional, embora definido há séculos por Jean Bodin, foi ratificado no pós-guerra pela ONU ao reconhecer o direito de autodeterminação dos povos.
Em termos diplomáticos, Bolsonaro tem dito barbaridades, se consideramos que fala pelo País. Zombou da mulher de Macron, ironizou a Alemanha, criticou a Noruega e defendeu a ditadura de Augusto Pinochet. Pesa contra ele, também, sua desconfiança da ONU e de instrumentos internacionais, incluídos os que trabalham com as mudanças climáticas.
Embora outros biomas, como o Cerrado e o Pantanal, estejam igualmente em chamas, a questão da Amazônia é a mais importante. O exercício da soberania nacional sobre um governo que administra uma extensa área indispensável ao planeta coloca inúmeras questões.
Como se vê a soberania no Brasil? É um debate que existe também nos EUA. Nele, ambas as partes defendem a soberania. Mas uma delas a vê fortalecida com a cooperação internacional e a outra, com o isolacionismo. Como Bolsonaro navegará entre esses polos não sei exatamente.
O conceito puro de soberania vem sendo questionado. Lembro-me da primeira menção a esse questionamento numa conferência na Holanda. Já naquele momento Mitterrand experimentava a expressão soberania limitada, aplicável em pelo menos dois setores: a destruição do meio ambiente e o desrespeito maciço dos direitos humanos.
Agora, no cenário norte-americano, vejo uma nova forma de questionar a soberania. Enquanto alguns senadores falavam em boicote comercial, alguns articulistas e acadêmicos afirmaram que a destruição da Amazônia é um ataque à segurança nacional dos EUA. Um deles afirmou que as queimadas podem ser vistas como arma de destruição em massa.
Tudo isso se dá no campo democrático. Mas é o que vai disputar as eleições com Trump e, segundo as pesquisas, com chances de vitória, embora seja muito cedo para falar disso.
Aos poucos, a questão não é mais o conceito de soberania a ser questionado, mas posto contra outro de grande alcance nos EUA: a segurança nacional.
A expressão arma de destruição em massa certamente é um cálculo sobre os prejuízos humanos e ambientais. Pode-se discordar da análise. Mas o fato é que se trata de uma expressão perigosa, o Iraque que o diga. Com ou sem armas de destruição em massa, Saddam Hussein foi para o espaço.
Bolsonaro já é uma espécie de vilão na imprensa internacional. Trabalhou para isso e parece não se importar muito com as consequências para a imagem do Brasil. Afinal, os estrangeiros não votam.
A julgar pelas intervenções do ministro Ernesto Araújo, o tom será de negação das mudanças climáticas, inexistentes ou exageradas. Segundo ele, a Nasa não consegue distinguir uma queimada de uma fogueira. Seus sensores devem pirar no Nordeste com as festas juninas.
Li que Araújo será o principal formulador do discurso. Li, também, que Araújo consultou Steve Bannon para se inspirar. Bannon certamente vai querer fortalecer uma coalizão de extrema direita da Hungria ao Brasil, passando por partidos como o de Marine Le Pen, na França, e pela extrema direita latino-americana. Se isso transparecer no discurso de Bolsonaro, será um contrabando, uma vez que o partido de Bolsonaro pode ser de extrema direita, mas a política nacional, não. É a mesma cantilena do passado, a dificuldade no governo do PT de levar uma política internacional diferente da visão partidária.
Esta passagem por Nova York, embora breve, é um teste para Bolsonaro, com repercussões em nossa vida política. Ele já pensou em visitar a cidade em outras circunstâncias. Numa delas, iria ao Museu de História Natural, onde seria homenageado. Foi rejeitado.
Imagino que as pessoas em Nova York não se importem muito com o que acontece na ONU nem se interessam pelos discursos que se fazem ali. Mas desta vez, creio, a presença de Bolsonaro falando como presidente do Brasil interessa aos jornais e à televisão. Impossível prever um desfecho, mas dentro dos limites é possível elaborar sobre o contexto em que esta fala de Bolsonaro se coloca.
Lembro-me das críticas a Sarney por citar um obscuro poeta maranhense no seu discurso na ONU. Pecado venial, mesmo porque não estavam prestando tanta atenção assim a um discurso protocolar. Os tempos de terraplanismo, negação do aquecimento global, da diversidade da culturas – enfim, tantas armadilhas – podem nos fazer sentir saudades dos tempos em que o único reparo era o nome de um poeta maranhense.
Um caminho que me parece correto seria reconhecer a legitimidade da preocupação internacional com a Amazônia, e não descartá-la apenas denunciando interesses escusos. Outro passo seria contar com a cooperação de outros países para preservá-la de forma sustentável e inclusiva.
Não há contradição entre cooperação multilateral e soberania, desde que os objetivos sejam idênticos: manter a floresta em pé, recompor parte dela, explorar seus recursos de forma sustentável, melhorar as condições de 28 milhões de pessoas em nove Estados do País.
Esta me parece ser a posição de todos os governadores da Amazônia Legal. Falando em nome do Brasil, Bolsonaro não pode ignorá-la. E teria de defendê-la de forma bastante convincente, pois todos os olhos e ouvidos são conhecedores de sua biografia política.
Estarão esperando um lance para reconhecerem o Bolsonaro que têm na cabeça. Seria preciso que desaparecesse por trás de um discurso sensato. Mas tenho minhas dúvidas.
*Jornalista
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