- O Globo
Democracia é a soma de inúmeros detalhes formando um mosaico. Ela corre riscos quando é atacada em cada uma das suas partes ou princípios
O evento marcante da semana passada foi o alerta de que a democracia corre riscos. Pelo aviso em si e pelo local: plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Foi dito não apenas pela pessoa que se despedia do cargo, a procuradora-geral, Raquel Dodge, mas pelo decano ministro Celso de Mello. O ministro começou a semana com uma nota de condenação à censura, e na quinta-feira estava listando o que o Ministério Público é e o que não pode ser. A democracia é a soma de inúmeros detalhes formando um mosaico. Ela corre riscos quando começa a ser atacada em cada uma das suas partes ou princípios.
O que estava em questão naquela sessão era o Ministério Público. Como ele deve ser, segundo a Constituição. Em resumo, o decano disse que o Ministério Público não serve a governos, a pessoas, a grupos ideológicos. Não se curva à onipotência do poder. Não deve ser o representante servil da vontade unipessoal, nem pode ser instrumento contra as minorias. “Sob pena de o Ministério Público ser infiel a uma de suas mais expressivas funções (...) que é a de defender a plenitude do regime democrático.” Foi assim, toda pontuada de recados, a fala do decano. A sessão fora aberta com declarações do ministro Dias Toffoli nesta mesma linha. O que parecia ser apenas uma formalidade ganhou força de recado e alerta.
Na mesma tarde o procurador indicado continuava sua peregrinação pelos gabinetes dos senadores. Augusto Aras construiu um discurso para o convencimento de quem vai sabatiná-lo, da mesma forma que havia construído com sucesso para o presidente Jair Bolsonaro. A frase captada pelo jornalista Marcione Santana, da TV Globo, durante a conversa com o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) é emblemática. Aras conta que se aproximou do presidente através de um amigo comum. “Eu disse ao presidente exatamente isso: presidente, o senhor não pode errar, porque o Ministério Público, o procurador-geral da República, tem garantias institucionais, que o senhor não vai poder mandar, desmandar (...) ( O PGR) Tem a liberdade de expressão para acolher ou desacolher qualquer manifestação. O senhor não vai poder mudar o que for feito.”
A rigor essa frase é óbvia, porque o MP é independente, mas ela tem uma dubiedade. Apresentada ao presidente parece ser a oferta de que com ele, Aras, o governo estaria seguro. Relatada ao senador parece ser a reafirmação da independência. Uma frase moldável ao interlocutor. Enquanto isso, Aras deve ser lido pelos seus atos. Ele não foi apenas de fora da lista, ele foi contra a lista. Um processo que não é sindicalista, é a forma que se consolidou como a mais eficiente para construir a liderança numa instituição em que os próprios procuradores têm também sua autonomia. Depois de nomeado, ele chamou para a sua equipe o procurador Ailton Benedito, defensor da ditadura, e o procurador Guilherme Schelb, que de tão alinhado com o governo quase foi ministro. Com essas duas nomeações, Aras está dizendo ao presidente que ele não errou ao escolhê-lo.
Celso de Mello falou várias vezes em defesa das minorias. O presidente Bolsonaro tem falado sempre contra os direitos de minorias. De forma genérica, em ataques diretos a grupos, ou apagando agendas das políticas públicas. Em palanque, disse: “vamos fazer um governo para as maiorias, as minorias se adequem ou simplesmente desapareçam.” Desde que se elegeu, ele repetiu isso várias vezes. No mês passado, afirmou que “se é para proteger minoria, vamos proteger o serial killer”. O ministro afirmou que “fora da ordem democrática não há salvação”. Bolsonaro tem entre as suas obsessões a defesa do regime militar.
Celso de Mello afirmou que “só as leis dessa república laica merecem sua proteção institucional”. Bolsonaro em palanque afirmou que “não tem essa historinha de Estado laico não”. O nome do presidente não foi citado. Mas é dele que se falava naquele plenário. Ele comanda uma sucessão de ameaças diárias. A cada dia uma nova fissura, uma política que fere um direito fundamental, mais um rasgo na Constituição. Raquel Dodge terminou sua fala pedindo aos ministros: “Protejam a democracia brasileira tão arduamente erguida.” Não é tarefa apenas do Supremo, mas os votos daquele plenário serão decisivos para evitar que um dia chegue lá um cabo e um soldado.
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