- O Globo
Houve quem visse nas conversas de Augusto Aras com senadores um certo ar de independência do escolhido por Jair Bolsonaro para chefiar a Procuradoria-Geral da República. Confesso que enxerguei a coisa de maneira inteiramente oposta. Ao tentar argumentar a favor da liberdade que terá para exercer a função, que de resto lhe garante a Constituição, o nomeado acabou de maneira inequívoca mostrando quem vai mandar mesmo na PGR quando seu nome for aprovado pelo Senado.
A frase de Aras ao senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), captada pelo microfone do repórter cinematográfico Marcione Santana, da TV Globo, não mostra altivez do indicado e tampouco um aviso ao presidente de que, empossado, seria ele quem daria as cartas de maneira livre e soberana, como se supôs. Ao contrário, na afirmação gravada pela câmera do cinegrafista, Aras avisava a Bolsonaro que era melhor ele escolher para o posto alguém alinhado porque, de outra forma, não teria qualquer controle sobre a PGR.
Foi explícito. Aliás, nunca se viu antes de maneira mais clara um candidato à vaga de procurador-geral afirmando a um presidente da República por que é melhor ir logo escolhendo um dos seus para a função. A frase de Aras não deixa muita dúvida. “Eu disse ao presidente exatamente isso: presidente, o senhor não pode errar (...) porque o Ministério Público, o procurador-geral da República, tem garantias constitucionais, que o senhor não vai poder mandar, desmandar ou admitir a sua expressão. Tem a liberdade de expressão para acolher ou desacolher qualquer manifestação. O senhor não vai poder mudar o que for feito”.
A percepção de que Aras estava sugerindo a Bolsonaro escolher um alinhado, como ele próprio, se traduz na expressão “o senhor não pode errar”. O procurador indicado não estava dizendo absolutamente que teria autonomia no cargo. Ao contrário. Faltou um complemento na frase, que seria mais ou menos assim: “O senhor não pode errar, melhor então nomear logo alguém que pense como o senhor e que não lhe traga surpresas desagradáveis, presidente. Se nomear um daqueles três da lista, terá aborrecimento na certa. Vai por mim”.
“O senhor não pode errar” significa mais ainda. Tem o dom de orientar um presidente da República em direção, vejam que paradoxo, ao erro. Ao sugerir que Bolsonaro escolha uma pessoa da qual não vá se arrepender depois, em quem ele não poderá “mandar ou desmandar”, o procurador recomenda que o presidente atente exatamente contra a autonomia que a Constituição estabelece para o Ministério Público e nomeie alguém que não lhe decepcione. Se ele “não vai poder mudar o que foi feito” depois, que se contorne o problema agora.
Nomear procurador-geral fora da lista tríplice não é nenhum crime. A lista tríplice foi uma invenção corporativa do Ministério Público, não prevista na Constituição. Desde 2003, um dos três mais votados pelos procuradores assume o comando da casa. Foi assim com Claudio Fontelles e Antonio Fernando (Lula), Roberto Gurgel e Rodrigo Janot (Dilma) e Raquel Dodge (Temer). Essa última foi a segunda mais votada, os demais chegaram em primeiro lugar. Antes deles, Fernando Henrique ignorou a lista dos mais votados e nomeou Geraldo Brindeiro, que chegara em sétimo lugar na eleição interna.
Brindeiro ficou na função por três mandatos e saiu carregando o triste apelido de “engavetador-geral da República”, por sentar em cima e não dar prosseguimento a ações contra o Executivo. É esse o risco que se corre agora. O alinhado Augusto Aras pode ressuscitar a velha prática de engavetar qualquer coisa que possa dar dor de cabeça ao chefe. Por isso ele recomendou: “O senhor não pode errar, presidente”.
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