domingo, 15 de setembro de 2019

Dorrit Harazim - Réquiem

- O Globo

Incêndio no Badim foi, mais uma vez, ‘apenas’ uma aposta de risco que deu errado numa cidade já castigada ao máximo

As duas tragédias não poderiam ser mais distintas. O atentado terrorista às Torres Gêmeas de Nova York interrompeu o mundo que conhecíamos até aquela manhã de 11 de setembro de 2001. Teve dimensão planetária, fez 2.977 mortos diretos e quase dez mil vítimas que continuam morrendo aos poucos devido à inalação de toxinas. O ataque teve, sobretudo, precisão cirúrgica. “Quando você quer humilhar um império, você mutila suas catedrais, símbolos de sua fé”, resumiu à época a jornalista Nancy Gibbs. Para os terroristas do grupo Al-Qaeda, destruir as Torres Gêmeas fincadas no coração de Wall Street, nas barbas da Estátua da Liberdade, e atingir a fortaleza de concreto que abriga o Pentágono em Washington significava acertar os santuários econômico e militar da maior potência mundial.

Já o incêndio de quinta-feira no Hospital Badim, Zona Norte do Rio de Janeiro, teve o destino reservado a faits divers trágicos do noticiário internacional — acabou espremido entre o avanço das queimadas no Brasil, o curso delirante do Brexit, o enterro do ex-presidente do Zimbábue, o debate entre candidatos à sucessão de Donald Trump. Visto de longe, foi mais uma horrenda fatalidade não intencional, com um saldo inicial de 11 mortos. No calendário das tragédias cariocas de 2019, a desta semana veio se somar ao incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo (fevereiro, 10 mortos), o desmoronamento de um condomínio na Muzema (abril, 24 mortos).

A infâmia está justamente nessa cruel diferença: o incêndio do Badim não foi arquitetado nem planejado ao longo de anos para ferir de morte ou colocar de joelhos um inimigo colossal. Foi, mais uma vez, “apenas” uma aposta de risco que deu errado numa cidade já castigada ao máximo por quem faz dela seu feudo privado. Até o fechamento deste texto, as investigações sobre a origem do incêndio e prováveis lacunas no protocolo de emergência do hospital estavam apenas no início. É possível, senão provável, que a habitual cadeia de atalhos no cumprimento de normas segurança, inspeção e prevenção apareça lentamente, muito depois dos enterros, das missas de sétimo dia, dos aniversários de morte. É possível, bastante provável, que responsabilidades não conseguirão ser punidas no cipoal jurídico em que tragédias deste porte costumam ficar enredadas.

Apenas num aspecto o 11 de setembro americano de 2001 e o fatídico 12 de setembro carioca têm semelhança: o valor de vidas que se perderam é o mesmo. O horror de um corpo que salta para o vazio do 102º andar de uma Torre Gêmea em chamas é igual ao horror da asfixia de uma paciente idosa no terceiro andar de um CTI, atrelada a aparelhos desligados.

Dor, medo, desespero, bravura humana não são mensuráveis pela dimensão de cada tragédia. São absolutos e universais. Os rompantes de solidariedade que brotam, também. Felizmente.

Coube ao neurologista Oliver Sacks e à sua formidável compaixão erudita encontrar na música um refúgio seguro para tempos de desalento, seja ele individual ou coletivo. Em “Alucinações musicais”, livro dedicado à interseção entre música e o funcionamento do cérebro humano, Sacks relembra um episódio ocorrido no quinto aniversário do atentado do 11 de Setembro. Como sempre, a data desenterrava sensações que no resto do ano ficavam soterradas. Ele saíra de casa de bicicleta e, ao se aproximar da devastação do Marco Zero, ouviu o som de um violino tocando a “Partita nº 2” em ré menor de Bach. Juntou-se à roda de transeuntes que se formara. Ao final da “Partita”, cada um seguiu seu rumo, em silêncio. “A música não tem o poder de representar algo específico ou externo, mas tem o poder único de expressar profundezas íntimas. Ela consegue chegar direto ao coração, sem mediação. Num acorde, é capaz de espelhar o que sentimos diante da enormidade de tragédias”, escreveu. Como é sabido, a música já lhe devolvera vida uma vez. Naquele 11 de setembro, Sacks relembrou o paradoxal poder da música, misterioso e único, de trazer conforto justamente por abrigar nossa dor.

Que semana triste!

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