- O Estado de S.Paulo
Vivemos em primeira pessoa um dos paradoxos mais agudos da democracia, que é o de permitir que antidemocratas às vezes triunfem
Um diagnóstico expressivo sobre situações de crise estrutural, dessas que nos dão a impressão de se arrastarem indefinidamente e trazem só a certeza de que, depois de se estabilizarem, nada será como antes, chama a atenção para o perigoso interregno entre o velho, que já está morto, e o novo, que ainda não nasceu ou mal se deixa entrever. Esse interregno – diz o diagnóstico formulado nos anos 1930 por intelectual da esquerda marxista – estará povoado de fatos e ações incompreensíveis, movimentos fora dos padrões “normais” e até fenômenos patológicos, dotados, por isso mesmo, de carga explosiva.
Naqueles anos, áreas reducionistas da esquerda supunham que fantasmas e assombrações surgiam só de um lado. Vivia-se, segundo o esquema mais simples, a era da transição entre modos de produção radicalmente antagônicos e a reação contra esse horizonte revolucionário é que entorpeceria a razão e geraria monstros como o fascismo e o nazismo. Correntes mais atentas às lições da História passaram progressivamente a entender que o século das massas, agrupadas em partidos e sindicatos, não seria necessariamente um tempo de revoluções catastróficas, podendo constituir, ao contrário, rara oportunidade de ampliação e mudança do mundo liberal, com o enriquecimento da pauta original dos direitos civis com novos direitos sociais e econômicos.
Ao contrário do que pensavam os autoritários dos anos 1930, aquilo que por convenção chamamos Ocidente político, com sua sociedade civil rica e diversificada, iria afirmar-se nas décadas “gloriosas” do pós-guerra como um modelo que contém em si elementos de universalidade. Nesse Ocidente não haveria, por exemplo, lugar para o choque frontal de adversários irredutíveis, uma vez que todos – indivíduos e grupos sociais – têm sempre algo valioso a perder. Por exemplo, a ideia de produtividade do conflito. Longe de dilacerar o tecido social e arruinar os países, esse conflito, balizado por regras institucionais, seria antes sinal de vitalidade, renovação e progresso. O caos aparente das democracias, sua vida muitas vezes conturbada constituíam a razão básica da atração praticamente universal que irradiavam – atração que nós, brasileiros, pudemos muito bem sentir nos longos períodos de autoritarismo.
A política como hegemonia, não como força bruta, foi o que então propuseram mais ou menos explicitamente as correntes de esquerda identificadas com o Ocidente político. E, note-se bem, hegemonia não de classe ou de partido, o que só disfarçaria antigas taras autoritárias nelas também presentes, mas, sim, de algumas ideias-base suscetíveis de serem aceitas e apropriadas por todos. A dignidade de cada ser humano. A reconversão ecológica da economia, em face da crise do clima que a ciência afirma e se desenvolve sob nossos olhos.
A emancipação da mulher e o surgimento de novas subjetividades, contra toda forma de discriminação. E se de esquerda falamos, não caberia esperar que renunciasse à tradição igualitária, o que seria de todo modo uma perda, mas que associasse a essa tradição a afirmação convicta da liberdade – e liberdade até, e sobretudo, para os que pensam diferente.
Nesse plano “superestrutural”, que deixa de lado deliberadamente a redefinição em curso da economia pela globalização, o específico da crise contemporânea parece consistir em que demasiados atores, em diferentes latitudes, abandonaram a política como luta hegemônica que supõe todos os valores do liberalismo clássico, a começar pelo pluralismo. Sob o rótulo discutível, mas eficaz, de populismo, surgiram à esquerda e à direita vozes do atraso que ora fazem referência direta à força (à “borduna”), ora apregoam um simulacro de luta hegemônica, apelando para (des)valores arcaicos de um passado ideal e, a rigor, falsificado.
O campo fica assim aberto para os fenômenos patológicos do nosso tempo, de cuja condenação ninguém se pode eximir. Ao lado de nós, a Venezuela de Chávez e Maduro protagoniza uma das maiores tragédias da América Latina, rivalizando com o general Pinochet ou, a bem da verdade, superando-o em crueldade e capacidade de destruição, como atestado por Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos. A Europa do compromisso social-democrata, que tenta há décadas uma inédita arquitetura supranacional que relegue aos manuais escolares sangrentas rivalidades seculares, vê-se assediada por demagogos que se agarram a uma noção medievalizante de pátria, inimiga de refugiados e imigrantes.
Como a linguagem dos nacionalismos é feita de ficções e simulacros mais ou menos globais, um pouco por toda parte – na Rússia de Putin ou nos Estados Unidos de Trump – vê-se a instrumentalização grosseira das religiões, mobilizando-as de modo espúrio para legitimar modos de crença e comportamento que ignoram a ciência, o iluminismo e a ética dos modernos. É como se sociedades internamente estilhaçadas por desigualdades crescentes pudessem ser reunidas num céu de religiosidade duvidosa, manipulada por figuras como um ex-agente secreto de regime totalitário ou um milionário cercado de acusações de estupro, cujas biografias nem de longe sugerem o odor de santidade que lhes atribuem seguidores fanáticos.
Não é preciso muito esforço de imaginação para notar que, hoje, o Brasil oficial está enganchado nesse trem de ideologias fantasmas. Segundo o ministro Celso de Mello, aliás, trevas dominam o poder de Estado ou ameaçam dominá-lo. Vivemos em primeira pessoa um dos paradoxos mais agudos da democracia, que é o de permitir que antidemocratas às vezes triunfem. Mas os democratas, sem abdicar dos próprios meios legais e pacíficos, saberão travar a luta hegemônica, que agora é, em essência, luta por difusão e enraizamento de valores civilizatórios comuns. Por isso, o triunfo dos outros será sempre provisório.
*Tradutor e ensaísta, é autor de ‘Reformismo de esquerda e democracia política’ (Fundação Astrojildo Pereira, 2018)
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