sábado, 5 de outubro de 2019

Daniel Aarão Reis - Amanhã será outro dia

- O Globo

As milícias se tornaram hoje uma das principais ameaças à democracia. É o que nos diz Cid Benjamin

Às vezes eles aparecem atirando, intimidando, matando, como tigres enfurecidos. Podem, porém, chegar de mansinho, deslizando sem fazer barulho, como cobras. São os milicianos. Em todos os casos, oferecem proteção contra males considerados insuportáveis: bandidos comuns e traficantes. As milícias têm longa tradição no país. Nas zonas rurais, outrora, apareciam sob a forma de jagunços e capangas. Aterrorizavam os que lutavam contra a violência exercida pelos que tudo tinham e podiam: os senhores de terra. Nas cidades, existia o fenômeno dos chamados justiceiros: faziam justiça com as próprias mãos, torturando e matando, e não foram poucos os momentos em que pelo menos parte da sociedade os cobria com respeito e fama.

Nos anos da ditadura, sob a sombra da cumplicidade do Estado, e também nos anos que se seguiram, sob o regime democrático, continuaram, no campo, a barbarizar posseiros, pequenos proprietários e nações indígenas. Nas cidades, constituíram os “esquadrões da morte”. Investigavam, prendiam, julgavam, condenavam e executavam.

Depois da Constituição de 1988, os governos eleitos pelo povo, infelizmente, não estimaram a gravidade do processo. Imersos e envolvidos em jogos conciliatórios, pareciam não ver a cobra se agigantando.

Nos anos recentes, no quadro da deliquescência do Estado, sobretudo em bairros populares, nas periferias das grandes cidades, a cobra cresceu e engordou. Já começa a se aproximar dos bairros de classe média e de gente abastada. Sua principal oferta, como sempre, é proporcionar segurança. Um paradoxo, pois, sob o domínio do arbítrio, o que reina é a insegurança. Pouco a pouco, assenhoram-se de outros serviços: gás de botijão, água mineral, eletricidade, internet, transporte alternativo. Impõem preços de monopólio e intimidam e matam os que protestam. Na etapa atual, em novas metástases, almejando o poder político legal, começaram a eleger vereadores e deputados, aproximando-se de áreas centrais do poder.

De sorte que as milícias se tornaram hoje uma das principais ameaças à democracia brasileira. É o que nos diz Cid Benjamin, em “O Estado policial”, muito mais que um livro, um manual de sobrevivência nestes tempos sombrios.

O autor relaciona, analisa e interpreta este e outros perigos. Começando pelos dispositivos legais. Entre outros, os mais temíveis: a Lei de Segurança Nacional que, desde sua primeira edição, em 1935, não tem feito mais do que proteger o Estado contra a cidadania. E a Lei das Organizações Criminosas, editada por uma distraída Dilma Rousseff, criminalizando os movimentos populares e ameaçando os que se atreverem a desafiar a Ordem.

A internet e seus instrumentos — celulares, computadores, notebooks e tablets — merecem capítulo próprio. Promessas de liberdade entrelaçadas com mecanismos de controle que podem fazer desta geração a última a dispor de privacidade e liberdade. Como e quando usar ou não estas engenhocas, evitando-se a queda nas malhas de eventuais perseguidores, eis o desafio. Como driblar câmeras, microfones e outros mecanismos de vigilância que se somam a técnicas mais antigas: as infiltrações policiais, o uso de “cachorros”, os dedos-duros a serviço, e as “montarias”, que podem, sem querer, levar à perda os próprios companheiros.

Nestas engrenagens, menção especial merece a tortura, velha tradição nacional, política de Estado ao tempo das ditaduras, recurso permanente contra negros e pobres, estes suspeitos de sempre.

Em linguagem acessível e convincente, sem deixar de recorrer, às vezes, ao humor, antítese da sinistrose, Cid Benjamin discute caminhos e opções, oferece dicas, gingas de corpo, rotas de fuga. Trata-se de defender as lideranças e os movimentos populares de ataques que já vêm sofrendo e que podem ainda piorar. Mas os prognósticos do autor são otimistas. Vai passar. E lembra o poeta: amanhã será outro dia. O recurso dos que mantêm esperança: o futuro será melhor. O problema, como advertiu Tocqueville, é que o futuro sempre chega tarde demais.

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