- Valor Econômico
Kirchernismo aposta no futuro e deve dar espaço ao presidente
“Borrón y cuenta nueva”, algo como apagar as lembranças ruins e começar do zero na gíria portenha, é o lema do empresariado argentino para encarar os prováveis quatro anos de gestão Alberto Fernández a partir de dezembro.
Os donos do PIB na Argentina trocaram com entusiasmo o “capitalismo de amigos” da era kirchnerista pelo “governo de CEOs” de Mauricio Macri, mas já desistiram do atual presidente e agora depositam sua energia em garantir um Alberto livre de manipulações da sua fiadora política Cristina Kirchner.
Nas ruas de Buenos Aires, compara-se o arrastado período de 11 semanas entre a vitória de Alberto nas primárias de agosto e as eleições de 27 de outubro com o cotidiano na ilha deserta de “Lost”: o purgatório se prolonga e nunca termina, o país caminha em um universo paralelo, quem ganhou ainda não está eleito definitivamente, quem perdeu mantém o poder da caneta e tem chances teóricas de uma virada.
Só na teoria. Esgotou-se, nos círculos empresariais, o que restava de confiança em Mauricio Macri, o ex-príncipe dos mercados, que em 2015 prometia acabar com a pobreza e encerrará o mandato com 5 milhões de pobres a mais, inflação fora de controle, economia menor hoje do que há quatro anos. O sentimento é de que Macri agiu como um menino mimado, não quis aceitar a derrota inesperada nas urnas e resolveu governar por impulso em suas últimas semanas na Casa Rosada: calote disfarçado, aumento do salário mínimo, congelamento de preços da gasolina, no melhor estilo esqueçam tudo o que eu dizia.
A senha do abandono foi dada pelo chefe da União Industrial Argentina (UIA), Miguel Acevedo, que se aproximou de Alberto e já falou de Macri como passado. “Para analisar sua Presidência, haveria que deixar o tempo passar e colocá-la em perspectiva, mas eu o via no princípio como uma pessoa mais aberta em seus pensamentos. Pouco a pouco, foi se fechando em um grupo que falava para si próprio. Não teve a sensibilidade de escutar a sociedade”, afirmou Acevedo.
Auxiliares de Macri espalham na imprensa local que pesquisas qualitativas indicaram três tipos de eleitores: 1) um é o esquerdista tradicional que jamais o enxergou como alternativa; 2) outro se sentiu decepcionado e também não considera mais votar nele; 3) um terceiro optou por voto de protesto nas primárias, numa espécie de apelo ao presidente para que lhe ouça com atenção e proponha soluções para o futuro.
É esse eleitor desatendido, mas não desencantado, que Macri tenta resgatar em sua campanha “sí se puede” na reta final. Tudo leva a crer que é tarde demais. Enquanto ele adota tom populista em comícios no interior do país e banca o linha-dura no debate dos candidatos pela TV, Alberto faz viagens ao exterior e amigos no establishment interno. Já reconstruiu pontes até com o dono do Grupo Clarín, Héctor Magnetto, alvo maior da ex-presidente Cristina Kirchner.
Quando eleitores, mercado, empresários, analistas políticos, governos estrangeiros dão uma eleição como definida, já era para um candidato. Alberto liquidou a fatura e venceu Macri. Agora a eleição que importa é entre ele e sua vice Cristina: quem mandará?
Diosdado Cabello, o número dois da nomenklatura chavista na Venezuela, tratou de mandar seu recado: “Tomara que quem estiver sendo eleito não vá acreditar que o estão escolhendo por ser ele. Porque têm uns que, depois de chegar aí [na Presidência], esquecem que, sozinhos, não poderiam jamais”.
Alberto, tido como a voz mais moderada e conciliadora de todo o gabinete na administração Néstor Kirchner (2003-2007), criticou duramente o regime de Nicolás Maduro na campanha presidencial.
Teve que recuar depois de um puxão de orelha de Cristina. Agora diz que cabe aos próprios venezuelanos encontrar solução para sua crise, numa postura de silêncio cúmplice com a ditadura, e prometeu retirar a Argentina do Grupo de Lima.
Críticas ao acordo Mercosul- União Europeia e uma promessa de renegociação da dívida externa despertaram o temor de volta ao intervencionismo kirchnerista, mas Alberto já avisou que não pensa em controle de câmbio nem de preços. Aos empresários não descartou uma flexibilização das leis trabalhistas. Acabará sendo um fantoche de Cristina ou terá liberdade para governar?
“É a grande pergunta que faz hoje o mercado”, diz Ramiro Castiñeira, economista-chefe da consultoria Econométrica. Para ele, não surgiram respostas claras ainda. Há pontos de inquietação: “Você olha para o lado e está Cristina na vice-presidência. Olha para trás e está a equipe técnica kirchnerista. Olha para a frente e estão esses amigos no exterior”.
Parte de Julio Burdman, professor da Universidade de Buenos Aires, uma das avaliações mais sensatas e tranquilizadoras. Ele acha que esse temor de disputa de poder entre Alberto e Cristina reflete uma percepção errada. Burdman vê os esforços do kirchnerismo concentrados em outras frentes: o provável governo de Axel Kicillof (este sim um pupilo convicto da ex-presidente) na Província de Buenos Aires, o controle da Câmara dos Deputados, o fortalecimento de Máximo Kirchner (filho mais velho do casal) como a grande liderança das esquerdas.
A filha, Florencia, está se tratando de problemas graves de saúde em Havana e sempre pode servir de álibi (ou motivo real) para um afastamento de Cristina do debate público.
“Vejo o kirchnerismo mais dedicado ao futuro do que ao presente”, afirma Burdman. Há demandas sociais que precisam ser atendidas e Alberto deverá atender essa base. “Mas não vejo nada que possa opor Cristina à sua criatura no curto e no médio prazos. Ela não é tonta, é uma pessoa pragmática, sabe que a saída não é pela esquerda e deixará Alberto tocar um governo assumindo as responsabilidades por seus atos.”
O kirchnerismo raiz, com Kicillof e Máximo à frente, jogando para o futuro e deixando o novo presidente trabalhar em paz; o kirchnerismo Nutella, representado por Alberto, com base social e um voto de confiança dos empresários; um macrismo como força opositora relevante e vigilante. Pode até não ser ruim.
Dizem que há quatro tipos de países no mundo: os ricos, os pobres, o Japão (que tinha tudo para ser pobre, mas é rico) e a Argentina (que tinha tudo para ser rica, mas é pobre). Potência mundial e eldorado de imigrantes europeus na primeira metade do século XX, a Argentina percorreu o caminho inverso da prosperidade. Teve 14 recessões desde 1950. Está ruim, mas sempre pode ficar pior.
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