- Folha de S. Paulo
Incomoda o verniz científico que o Vaticano tenta imprimir aos processos de canonização
Compreendo que organizações religiosas precisem eleger modelos de vida virtuosa e mostrá-los conspicuamente aos fiéis, para que tentem imitá-los. É nesse contexto que se explicam santos, mártires, "stáriets", taumaturgos e iluminados.
Não tenho nada contra a santificação de Irmã Dulce, que me parece mesmo uma figura simpática. Devo, porém, dizer que me incomoda o verniz científico que o Vaticano tenta imprimir aos processos de canonização, vinculando-os a milagres que passam pelo crivo de comissões de médicos e cientistas, incumbidas de atestar que o fenômeno não tem explicação natural. Há aí uma confusão epistemológica. Não encontrar uma explicação é muito mais uma medida de nossa ignorância do que a certeza de uma interferência sobrenatural.
Chega a ser suspeito o fato de que a maior parte dos milagres modernos venha da medicina, campo em que reina a incerteza. O diagnóstico inicial estava certo? Componentes psicológicos influíam no quadro do paciente? Em que medida a remissão de um tumor, por exemplo —algo que todos os grandes hospitais registram com doentes de todas as religiões e ateus—, pode ser considerada milagrosa? Por que nunca vimos uma cura que calaria a boca de todos os céticos, como a regeneração de um membro amputado?
E, se quisermos levar o espírito de porco da ciência mais longe, podemos questionar até as motivações dos santos. Suas boas ações são fruto de altruísmo genuíno ou apenas um instrumento para conquistar um lugar no paraíso? Mesmo que descartemos essa última hipótese, a ciência mostra que ajudar pessoas libera neurotransmissores que produzem a sensação de bem-estar, o que também pode ser interpretado como uma motivação egoísta. Isso, é claro, se acreditarmos no livre-arbítrio, sem o qual não existe santidade, mas que a ciência vê com desconfiança.
É melhor para a religião manter os santos longe do escrutínio da ciência.
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