- Folha de S. Paulo
Não tardará a ser esmagado pela ansiedade do país
O desenvolvimento tecnológico atropelou tudo a que a humanidade estava acostumada; o conhecimento multiplica-se e rompe paradigmas na economia, na sociedade. Desta vez, não se trata de realocar mão de obra; também comércio e serviços se reinventam numa alucinante sequência de cliques transmitidos do sofá da sala. A obsolescência está posta, e mesmo o Uber —último refúgio de desesperados— será substituído pelo carro autônomo. A precarização retira renda e orgulho. Não sem motivos, medo e ressentimento transbordam para a política.
Em 2019, foi necessário decantar a última eleição, recuperar-se do baque da vitória de Jair Bolsonaro. Mas o leão do tempo ruge e a demora para a apresentação de respostas e alternativa ao que está acima tem colaborado para o aguçamento da polarização. De naturezas opostas, Bolsonaro e Lula estão plenos no palco; no cenário, nada de novo ou diferente. O fato é que o declamado centro não se colocou. Faltam-lhe ainda o sentido, o discurso e o rosto. Incapaz de responder a questões vitais, não tardará a ser esmagado pela ansiedade do país.
Como se apresenta hoje, o centro é um campo que sofre por indefinição; que, antes, se define pelo que não é, incapaz de expressar o que, afinal, pretende ser. É linha borrada, situada em lugar impreciso entre o bolsonarismo e o petismo. Tem fixação por refutar as teses do PT, enfatizar erros —reais, no entanto, mais que conhecidos. Omite-se, porém, quanto ao atraso bolsonarista, atado que parece estar à armadilha da adesão mecânica à agenda fiscal. Sem resvalar em questões mais substantivas, outra vez, não chegará longe.
Não porque o equilíbrio fiscal seja irrelevante. Ele não é. Mas é impossível apresentar-se como alternativa apenas com a bandeira do sacrifício, sem revelar os desafios colocados pela história e propor como superá-los. Se a situação do país, de estados e municípios é dramática e o remédio amargo, qual prognóstico para o doente? Mais que a prescrição de terapia, como será a sobrevida? Sem demagogia ou irresponsabilidade, é necessário, sim, expressar alguma esperança.
As pessoas compreendem o país na encruzilhada. A reforma da Previdência pouco foi combatida nas ruas porque as corporações foram poupadas, mas também porque, mais sábio que quem o quer governar, pragmaticamente, o povo absorveu a inevitabilidade do ajuste; se a saída será trabalhar mais, bola para frente. O centro, no entanto, permanece estacionado no governo de Michel Temer (MDB), no óbvio já ululante da mesmice do ajuste, repetida desde 2014.
É necessário avançar, voltar-se à questão fundamental: ainda que o presente exija ajustes, política se faz com o futuro, não pelo passado. Olhar para o amanhã, demonstrar que a saída do labirinto não é retroceder à Idade Média ou reinaugurar a Guerra Fria; que a desesperança é pernicioso terreno para o populismo e o autoritarismo.
Os efeitos da transformação exigem preparar o futuro dos jovens, a educação do amanhã. Combater o crime que se organiza, se espalha e ameaça instituições; despolitizar a Justiça, que perde o indispensável papel de árbitro dos conflitos; salvar o meio ambiente, que é questão para ontem; e, sem perder o sentido geral da política, assimilar novos perfis identitários que se colocam com força inédita. Que fazer?
Evidente que os recursos não brotam do chão e nem se trata de mera “vontade política”, mas a retórica exclusiva do ajuste espanta o desejo e a esperança. Cortar não é difícil. Difícil é a unir a sociedade —não dividi-la— em torno da utopia de um mundo melhor, juntar vontades.
Respostas demandam esforços para os quais os principais atores têm se mostrado incapazes. Desnecessário repetir que nada se fará sem ajustes, mas esse deixou de ser o núcleo do discurso. É preciso sinalizar o porquê e para quê fazê-lo, o que esperar do futuro. Premido por grandes blocos que emulam emoção, limitar-se à tecnocracia será a perdição, a doença infantil desse centro sem coordenadas. Ajustes são inevitáveis, desde Aristóteles, mas a busca da felicidade é a prova dos nove.
*Carlos Melo, cientista político e professor do Insper
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