- Valor Econômico
Há que romper os cânones de produção e consumo promovidos pela agroindústria dos negócios alimentares
Nos anos 2020, a saúde humana dependerá demais de difíceis mudanças nos históricos padrões das indústrias alimentar, cosmética, farmacêutica e química. Principalmente por uma dupla de perigos cujas denominações médicas ainda soam como estranhos neologismos: ‘lectinas’ e ‘desreguladores endócrinos’.
Lectinas são proteínas onipresentes em cereais, leguminosas, batata-inglesa, assim como em carnes e leite de animais empanturrados por rações de grãos. Macromoléculas com forte propensão a atravessar a parede intestinal, causando fissuras, condição conhecida como ‘síndrome do intestino permeável’. Uma vez no sangue, confundem o sistema imune, dando origem a várias doenças autoimunes, artrites, cardiopatias, diabetes e demências e óbitos precoces.
Os intestinos humanos não se adaptaram à alimentação excessivamente carregada de açúcar, arroz, batata, carnes, laticínios, milho, soja, trigo e óleos com gorduras trans. Por isso, estes nove grandes vetores do agronegócio global estão turbinando as piores bactérias intestinais, em detrimento das amigáveis, que deveriam, ao contrário, merecer toda a atenção e carinho.
Os vários recursos desenvolvidos pela espécie humana para se defender de tão feroz artilharia, amenizando seus piores efeitos, têm se mostrado insuficientes para lhe garantir a imprescindível tolerância imunológica. A consequente vantagem se de dar prioridade a alimentos com baixos teores em lectinas só torna mais evidente a necessidade de romper os cânones de produção e consumo promovidos pela dominante agroindustrial dos negócios alimentares. Problema que vai muito além do dos ultraprocessados, sobre o qual é recomendável consulta ao site da Abeso, Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica.
O prejuízo da ingestão excessiva de lectinas só foi detectado pela recentíssima compreensão dos papéis desempenhados pela microbiota intestinal (ainda mais conhecida por “flora”), só possível a partir de 2007, com o estratégico “Projeto Microbioma Humano”, dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA ((hmpdacc.org). Como se sabe, até há pouco nem constava dos currículos das escolas médicas e de nutrição a fulcral conexão intestino-cérebro. E talvez não haja melhor fonte sobre tal questão do que o livro “The Longevity Paradox”, de Steven R. Gundry, lançado em março (HarperLuxe).
O outro neologismo foi adotado pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia (SBEM) para substâncias compostas principalmente por bromo, cloro e flúor, como os parabenos, bisfenóis, ftalatos, perfluorados, triclosanos e bifenilos policlorados (PCBs). Antes chamados de ‘disruptores’, ‘interferentes’ ou ‘perturbadores’, são poluentes sintéticos que transtornam o funcionamento das glândulas controladoras do metabolismo, funções reprodutivas, crescimento, sistema nervoso e desenvolvimento cerebral. Órgãos que vão das suprarrenais e pâncreas aos testículos e ovário, passando pelo eixo estratégico tireoide/hipófise. Além de provocarem doenças como diabetes e obesidade, são eles os causadores das explosões de casos de crianças com déficit de atenção, hiperatividade, baixíssimo QI, autismo e outras deficiências cognitivas.
Mesmo assim, são tóxicos extremamente comuns em alimentos industrializados, cosméticos, produtos de cuidados pessoais (como sabonetes, loções, desodorantes e dentifrícios), plásticos, tecidos sintéticos, colchões, materiais de construção e, obviamente, produtos de limpeza e praguicidas domésticos. Algo como 150 mil produtos químicos de amplo consumo vendidos pelo comércio varejista, sem qualquer tipo de cuidado e informação. Ao contrário do que ocorre com muitos remédios e alguns agroquímicos, pois destes se exige, em princípio, receituário e instruções de uso, com explícitos alertas sobre os riscos.
Também são recentes as evidências sobre os perigos que os desreguladores endócrinos representam para a inteligência humana. Somente em 2009 surgiram, nos Estados Unidos, as cinquenta páginas do “Statement of the Endocrine Society on Endocrine-Disrupting Chemicals”, nas quais estão salientados tão deletérios efeitos. Em especial, a altíssima probabilidade de sério dano à formação do cérebro do feto, sempre que a gestante tenha tido contato com tais poluentes nos primeiros meses da gravidez. Alerta ratificado por meta-análise que está no periódico Endocrine Connections (2018, 7, R160-R186), revisão de 433 trabalhos, intitulada "Thyroid-disrupting chemicals and brain development: an update". E a melhor fonte sobre os desreguladores ainda é o livro Toxic Cocktail, publicado, em 2017, pela Oxford University Press. De autoria da endocrinologista britânica Barbara Demeneix, que há muito trabalha na França (CNRS) e mantém o site bdemeneix.wordpress.com
A principal consequência da ação conjunta de lectinas e desreguladores é que estará comprometido o mais sofisticado produto da evolução - nossos cérebros - justamente quando estará em pleno desenvolvimento a inteligência artificial.
*José Eli da Veiga, professor sênior da USP
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