- O Globo
Nunca foi fácil ao Reino Unido reconciliar passado de antiga potência imperial com o papel menor que lhe foi alocado no pós-Segunda Guerra
Existe uma corrente de pensamento bastante efervescente segundo a qual o conceito de eleição, tal qual o conhecemos, foi enterrado junto com o século 20. A ideia de que esta forma de consulta democrática consegue nivelar diferenças nacionais e concede ao vencedor tempo e espaço para implementar seu programa de governo é coisa do passado. Como escreveu o autor britânico John Harris, a política, depois que o mundo migrou para a vida on-line, passou a operar num ambiente de descrédito, cinismo e guerra tribal que a impede de chegar a qualquer desfecho. “Ninguém [mais] realmente vence”, conclui Harris. E mesmo quando vence, acaba mantendo a cabeça e o corpo em campanha eleitoral permanente. Vide o presidente Jair Bolsonaro.
O primeiro-ministro britânico Boris Johnson pode vir a ser a exceção à regra. Não apenas pela acachapante derrota eleitoral que impôs ao Partido Trabalhista esta semana, conquistando para o seu Partido Conservador a cobiçada maioria parlamentar ampla, geral e irrestrita. Ele também despachou Jeremy Corbyn, o líder trabalhista sem rumo exceto o precipício, para a vala comum dos políticos esquecíveis. Boris, como ele prefere ser chamado, venceu grande porque o país estava exaurido após três anos e meio de incerteza diária. Esta nação em busca de um futuro e uma identidade clara finalmente optou em tom irrefutável pela adesão ao Brexit — quaisquer que sejam os contornos e consequências dessa ruptura.
É uma virada e tanto para o Reino Unido. Nunca lhe foi fácil reconciliar o passado de antiga potência imperial, que não gostaria de esquecer, com o papel menor que lhe foi alocado a partir do pós-Segunda Guerra e do qual não pode escapar. Como escreveu em clarividente memorando de 1949 o cientista e conselheiro do ministério da Defesa Sir Henry Tizard, citado pela “London Review of Books”: “Não somos uma potência mundial nem voltaremos a sê-lo. Somos uma grande nação, mas se continuarmos a nos comportar como uma grande potência, em breve deixaremos de ser uma grande nação”. Nem Winston Churchill nem Margaret Thatcher abraçaram a construção da causa europeia alicerçada na ideia de que todos os membros devem ser parceiros iguais. A Dama de Ferro, em particular, fiel a seu apego e fascínio pelo exercício do poder, preferia lidar com líderes dos Estados Unidos ou da antiga União Soviética a tratar com parceiros europeus. Foi com desdém tipicamente francês que o socialista François Mitterrand, o presidente mais longevo da história do país ( 14 anos no poder) registrou que a sra. Thatcher “se comporta como uma menina de 8 anos quando fala com o presidente dos Estados Unidos”.
Difícil imaginar que Boris Johnson demonstre adulação semelhante em relação a Donald Trump, mesmo que a Grã-Bretanha desgarrada da União Europeia venha a precisar bem mais de acordos com os Estados Unidos do que o país comandado por Margaret Thatcher na década de 1980.
Adeptos de jogadas de alto risco, Boris e Trump estão em momentos decisivos de suas carreiras públicas. O primeiro, em ascensão. O outro, em turbilhão acima do habitual. Trump reservou a mesma sexta-feira 13 em que o Comitê Judiciário da Câmara aprovou dois artigos de impeachment contra ele (por abuso de poder e obstrução do Congresso) para tirar da cartola o entendimento com a China visando a chegar à primeira fase do acordo comercial com Pequim, globalmente aguardado. O impeachment com aprovação quase certa pelo plenário de maioria democrata, na próxima semana, constará para sempre na biografia do 45º presidente dos Estados Unidos. Em tempos normais, este fato seria percebido em toda a dimensão histórica que ele merece. Mas como nada na era trumpiana é normal, até mesmo o desfecho desse drama que se desenrola há três meses não é o que parece ser. Não apenas o pedido de impeachment será rejeitado pelo Senado de maioria republicana, cuja fidelidade canina ao ocupante da Casa Branca não tem paralelo na história americana, como o “impeachment que não foi” tende a deixar a nação ainda mais dividida — vários cartazes em comícios recentes conclamavam eleitores a pegar em armas caso Trump seja condenado.
Ele continua no poder. Talvez derrotá-lo nas urnas, pelo voto democrático, seja mesmo melhor para a história, para a nação e para o mundo.
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