- Eu &Fim de Semana / Valor Econômico
Continuar uma política que venera um passado idílico e que abomina os temas do século XXI é uma estratégia que condena o país ao fracasso
Acostumado a ser visto como o país do futuro, o Brasil está sendo governado com os faróis voltados para trás. Eis aqui uma característica marcante do primeiro ano de mandato: a preferência do presidente pelo passado e por (certas) ideias antigas, em contraposição às preocupações com os temas e questões mais vinculadas ao século XXI. Uma frase define tudo isso: Bolsonaro é um reacionário contra o futuro.
O presidente e seus ministros ou assessores estão a todo momento lutando contra algo “moderno” e defendendo o retorno das “tradições”. Conceitos que possam significar uma nova forma de ver uma realidade que está em mutação geralmente são malvistos pelo bolsonarismo.
O paradoxal desse discurso é que seu meio principal de propagação são as moderníssimas redes sociais. Assim, usando o Twitter do Carlucho (o Zero 2), o WhatsApp dos caminhoneiros, os programas televisivos dos evangélicos bolsonaristas e as “lives” do próprio Bolsonaro podem ser apresentados argumentos em prol de um passado idílico e são criticadas diversas modernidades que nos tirariam do rumo certo e da ordem natural das coisas.
Os exemplos de reacionarismo contra o futuro são vários. A luta contra as evidências que explicam as mudanças climáticas é um dos casos mais graves. O presidente, seu dileto ministro do Meio Ambiente e outros assessores já disseram, de um modo ou de outro, que não acreditam na opinião majoritária da comunidade cientifica.
Alguns dos aliados e gurus já falaram, inclusive, que a Terra é plana. O descaso com a ciência talvez tenha um sentido ainda maior: cientistas são “perigosos” na elucidação das ilusões do passado e realçam que os desafios do futuro trazem problemas novos, que exigem novas respostas.
Na questão ambiental, como noutras em que vigora o reacionarismo bolsonarista, a disputa não é apenas contra a ciência, mas contra os atores que defendem novos modos de lidar com as questões contemporâneas. É a defesa dos madeireiros e dos garimpeiros, geralmente ilegais, contra os índios, as ONGs e, sobretudo, os jovens que querem garantir a preservação do meio ambiente para a sua geração e para as próximas.
O episódio recente em que o presidente Bolsonaro chamou a ativista sueca Greta Thunberg de “pirralha”, porque ela dissera que indígenas brasileiros tinham sido assassinados porque estavam defendendo a floresta, revela como o bolsonarismo, além de mal-educado, vai colocar o país na vanguarda do atraso contra as bandeiras mais prementes, defendidas exatamente por aqueles que demograficamente serão o futuro do planeta.
A defesa de um passado idílico contra as “tendências nefastas” da modernidade tem no ministro da Educação um de seus baluartes. Weintraub já se posicionou contra a Proclamação da República e contratou seu guru Olavo de Carvalho para fazer um programa na TV Escola, emissora pública, no qual exalta a monarquia, ganhando a companhia dos argumentos do “príncipe-deputado” - e depois eram os outros governos que aparelhavam o Estado.
O elogio a Dom Pedro I não é um problema em si se quem o fizer perceber que o mundo de hoje precisa de respostas diferentes das propostas no passado. Nosso primeiro monarca criou a figura do Poder Moderador, que era ele mesmo e que controlava os demais, um sonho de consumo da família presidencial atual.
Quando se exalta um período histórico que aconteceu há dois séculos com o intuito de combater os problemas do presente, produz-se um anacronismo. O interessante é que o MEC criou um Programa chamado Future-se - e não precisa ser um passadista para dizer que esse slogan é um crime contra a língua portuguesa.
Continuando nessa toada de defender as tradições e a política do império (mas ignorando a escravidão), o ministro Weintraub superará Juscelino, só que numa conta inversa: quando estiver no quarto ano de seu mandato, logo na comemoração do bicentenário (2022), ele defenderá que o Brasil caminhe 200 anos para trás.
Mas o local em que a defesa do passado ganha mais força é a área da cultura. Seus gestores já defenderam que a escravidão foi positiva para os negros, que o rock (só faltou falar iê-iê-iê) é coisa do diabo, que o Brasil foi “civilizado” por Portugal com sua cultura cristã (esqueceu-se da Inquisição, é claro) e outras frases que querem apagar boa parte dos avanços obtidos pelo país e pela sua reinterpretação histórica desde pelo menos os últimos 50 anos do século XX.
Na verdade, eles querem sepultar a ideia de que a cultura representa a diversidade de uma nação - e a nossa é particularmente plural - e que não deve ser subserviente aos donos do poder, colocando no lugar uma visão medieval de bens culturais a serviço de uma moral e, é óbvio, da seita que comanda o poder.
A política externa tem uma visão reacionária contra o futuro mais sutil, porém mais esquizofrênica. O sonho do ministro Ernesto Araújo, que segue as ordens de Eduardo Bolsonaro sob a inspiração de Steve Bannon, é a de construir uma nova Guerra Fria, com uma divisão clara de quem representa o bem contra o mal no mundo contemporâneo.
Essa é a sua volta ao passado, seguindo a linha do bolsonarismo. O problema é como montar esse modelo bipolar na atual ordem internacional, que é mais multipolar e fragmentada do que o mundo do pós-guerra.
Uma possibilidade seria a junção das grandes potências cristãs do planeta - Estados Unidos, Rússia e Brasil. Parece-me que faltou, aqui, combinar com os russos e os americanos como se daria tal parceria. A outra proposta, bem ao gosto dos bolsonaristas, é a de fazer uma política externa contra o globalismo e os comunistas. O problema é que o país precisa hoje desesperadamente da China, que é uma potência que combina, paradoxalmente, comunistas e globalistas.
Esse modelo passadista tem seu ápice na visão dinástica que a família Bolsonaro tem do poder. Primeiro, os bolsonaristas-raiz atuam contra a separação entre Estado e Igreja, jogando fora a concepção secular que fundou a política moderna.
Em segundo lugar, e mais importante, o pai e os filhos veem o governo como uma extensão de sua casa. Entende-se assim porque não gostam da República e defendem a monarquia. No fundo, os Bolsonaros gostariam de ser uma família real, como as do passado.
Há, no entanto, bolsões no governo um pouco mais antenados com o mundo moderno. A ala econômica e a da infraestrutura são as que mais chegam perto disso. É bem verdade que a principal reforma realizada até aqui, a da Previdência, faz parte da velha tradição brasileira de só fazer grandes mudanças quando a casa está para cair - afinal, a reforma previdenciária tinha de ter sido aprovada há 20 anos, quando o deputado Antonio Kandir “errou” seu voto no plenário da Câmara Federal. Mas claramente existem algumas modernizações razoáveis defendidas pelo grupo mais tecnocrático.
Isso não quer dizer que a agenda econômica esteja completamente ligada à agenda mais contemporânea da área. Por exemplo, o tema das desigualdades (de renda, de gênero, de raça e de escolaridade) ganhou muita força no debate econômico internacional, mas não tem um espaço privilegiado nas ideias de Paulo Guedes. Do mesmo modo, a defesa de um liberalismo econômico meio selvagem já não é consenso nem no Departamento de Economia de Chicago. Isso para não falar de outras discussões mais de ponta, como a tributação para reduzir externalidades negativas no meio ambiente ou na gestão urbana.
Poderiam ser citados outros aspectos da discussão contemporânea que não têm tido a atenção necessária da equipe econômica. Dois exemplos, contudo, resumem a fragilidade da modernização proposta. O primeiro é o desastre na política de educação básica. Um Ministério da Economia do século XXI não pode aceitar isso, ou então deveria jogar fora todos os livros-texto sobre crescimento e desenvolvimento dos últimos 50 anos. Pior: depois dos trabalhos de Daron Acemoglu e James Robinson (“Por Que as Nações Fracassam”, por exemplo), é inimaginável colocar a democracia como um tema menor para quem é economista. Por sua terrível menção ao AI-5, Guedes mostra que, no fundo, ainda tem saudades do Chile de Pinochet.
É natural que muita gente tenha medo do futuro, porque as mudanças estão ocorrendo numa velocidade e imprevisibilidade quase sem paralelo na história. Essa é uma das razões de Bolsonaro conseguir ainda segurar um terço do eleitorado: um conjunto enorme de pessoas está querendo um porto seguro neste mundo em ebulição, e o discurso passadista em torno da moral e da religião oferece esse alento. O problema é que o tempo vai passar, e os desafios do século XXI vão se tornar maiores, exigindo respostas condizentes com a nova realidade.
Continuar em 2020 com uma política que venere um passado idílico e que abomine os novos temas do século XXI é uma estratégia que condena o país e as próximas gerações ao fracasso. Parece que o único futuro que importa a Bolsonaro e seus aliados são as próximas eleições presidenciais.
Se conseguirem ganhar o pleito, da maneira que seja, tudo bem. Diante desse cenário, as lideranças sociais e as demais forças políticas, ao centro e à esquerda, precisam atuar juntas para evitar que o passado vença o futuro. Sem isso, os próximos anos serão piores do que 2019, como numa distopia em cenário de cavaleiros medievais.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
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