- O Globo
Foi a grandiosa demonstração de torneiras abertas que reacendeu ressentimentos e rompeu a trégua sentimental entre franceses
Durou pouco a irmandade genuína e civilizatória que brotou das chamas da Catedral Notre-Dame. Apesar da ausência de cenas horrendas comuns aos atentados na França de anos recentes — apenas três pessoas tiveram ferimentos leves no incêndio da semana passada — , a família humana ficou em choque com a perda desse bem universal. Bela e eterna, Notre-Dame era quase um parente. E a França, num primeiro impacto, pareceu cerrar fileiras para reencontrar parte da alma perdida.
Como foi fartamente noticiado, as primeiras doações pipocaram enquanto as chamas ainda ardiam dentro da nave da catedral. François-Henri Pinault, o segundo homem mais rico do país (fortuna avaliada em 26 bilhões de euros), anunciou um aporte de 100 milhões de euros. Poucas horas depois, Bernard Arnault, seu rival mais bem-sucedido na indústria do luxo (fortuna estimada em 76 bilhões de euros), dobrou a filantropia do concorrente e anunciou que doaria 200 milhões para a empreitada. Outras famílias abonadas do país, empresas francesas e corporações globais também compareceram, além de cidadãos comuns, se somaram ao apelo.
Mas foi justamente essa grandiosa demonstração de torneiras abertas, tão invejada mundo afora, que reacendeu ressentimentos e rompeu a trégua sentimental entre franceses.
Sinal dos tempos, foi um tuíte de menos de 140 caracteres que melhor encapsulou a fervura social entumecida pela tragédia. “Victor Hugo agradece os generosos doadores dispostos a salvar a Notre-Dame e propõe que façam o mesmo com Os Miseráveis”, postou o escritor Ollivier Pourriol, referindo-se às obras do romancista que imortalizou a catedral. “Como é possível? 100 milhões, 200 milhões num piscar de olhos?”, pergunta Philippe Martinez, líder da central sindical CGT.
A tempestade se iniciara quando um exministro da Cultura e hoje consultor do benemérito Pinault sugeriu que as contribuições para o restauro da catedral ficassem isentas de impostos em 90% —quando a dedução atual é de 60% para empresas. O brouhaha foi imediato, e levou o grupo Pinault a anunciar que abriria mão do benefício fiscal por inteiro. Tarde demais: a questão da extinção do imposto sobre fortunas decretada pelo presidente Emmanuel Macron no início de seu mandato e que desde então enfurece boa parte do país voltou com força ao centro do debate nacional.
Vale lembrar que na origem do teimoso movimento dos Coletes Amarelos está o aumento do preço da gasolina e a desigualdade nos impostos. Não é de hoje que as grandes famílias abonadas da França são vistas pelo cidadão comum como uma classe de intocáveis. Mas é no atual clima aguerrido do país que até mesmo doações servem de alimento para desconfianças enraizadas. O tocante silêncio nacional perante o fogo não tardou a ser substituído pelas ofensas de regra na internet: “Lavagem de reputação”, “As listas de doadores mais parece um ranking de empresas e pessoas protegidas por paraísos fiscais”, “Em breve teremos um Centro Pinault numa das naves, e o pináculo reconstruído se chamará torre Arnauld”.
Por via das dúvidas, o primeiro-ministro de Macron, Édouard Philippe, achou necessário frisar que “cada euro doado à reconstrução da Notre-Dame será usado para este fim, e para nenhum outro”. Soou ruim. Assim como Macron soou distante, técnico, desprovido de empatia ou da introspecção esperada para aquele momento, ao falar à nação no pé da catedral em chamas. Prometeu reconstruí-la “mais bela que jamais, e quero isso concluído em cinco anos”. Soou ambicioso demais, de difícil concretude, sem contemplação para as exigências do tempo real.
Mas quem sabe? Paul W. Werth, professor de História na Universidade de Nevada, vê um paralelo entre o incêndio que destruiu o Palácio de Inverno na São Petersburgo de Nicolau I e a França de Macron. Foi num dia de dezembro de 1837 que labaredas envolveram a então residência primária do czar, hoje Museu do Hermitage, sob as vistas da população em agonia. A edificação era uma das mais grandiosas do mundo e foi descrita pelo poeta Vasilii Zhukovskii como “a representação de tudo o que é russo, do que é nosso, tudo o que remete à pátria”, maior ornamento da antiga capital do império.
Nicolau caiu em depressão, conta Werth. Para reverter a interpretação simbólica de fragilidade na autoridade monárquica, ele estabeleceu uma meta de reconstrução alucinada: 15 meses. Cumpriu. Na data do primeiro aniversário da destruição, porções do interior do palácio de 1.500 aposentos receberam iluminação como prova do progresso das obras. “E na noite de Páscoa de 1839 Nicolau celebrou não apenas a ressurreição de Jesus Cristo como a do seu Palácio de Inverno”, escreveu Werth.
Vale conferir o estado da Notre-Dame na Páscoa de 2024. O mandato atual de Macron expira em 2022, com direito a reeleição.
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