- Folha de S. Paulo / O Globo
Brasil tem que conviver com ministro que assina documento sem ler e suspende auxílio à pesquisa
Num governo que fez a opção preferencial pelo folclore radical, Abraham Weintraub é um personagem inesquecível. É legítimo herdeiro do general Aurélio de Lyra Tavares, que há exatos 50 anos governava o Brasil na junta militar que empalmou o poder diante da incapacidade do presidente Costa e Silva. O doutor Weintraub pediu dinheiro ao ministro Paulo Guedes referindo-se à “suspenção” de pagamentos. Dias depois, explicou-se dizendo que assinou a carta de oito páginas sem lê-la.
Em março de 1964, o general Lyra Tavares escreveu ao seu chefe, Humberto Castello Branco, falando em “acessoramento”, numa carta em que meteu também um “encorage”. Como o general acabou seus dias num fardão da Academia Brasileira de Letras o ministro da Educassão tem pouco a temer (quando a ditadura vivia seu período de abrandamento, era comum que panfletos e documentos militares criticassem a “distenção”).
Com Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), Weintraub compõe o triunvirato folclórico do governo Bolsonaro. Uma cedilha a mais ou a menos não deve ser motivo para condenar uma pessoa. Grave mesmo é que, no dia em que se noticia a suspensão do pagamento de 5.613 bolsas de mestrado e doutorado, o ministro vá para vitrine escrevendo que “tem gente que acredita em Saci Pererê, em Boi Tatá e em Mula sem Cabeça; e tem gente que acredita no Datafolha”. Seu chefe manifestou o mesmo ceticismo em relação a uma pesquisa que mostrou a corrosão de sua popularidade, lembrando que tem gente que acredita em Papai Noel. Tudo bem porque qualquer fantasia é admissível para quem se vê mal numa pesquisa, inclusive a de acreditar no bom velhinho.
Ministro da Educação é outra história, sobretudo num país que precisa de pesquisadores. O Brasil que já conviveu com um ministro do Exército que escreveu “acessoramento” pode conviver com outro, na Educação, que assina sem ler um documento mencionando uma “supenção” de pagamentos. Mais difícil será conviver com um administrador que suspende todas (repetindo, todas) as novas bolsas de mestrado e doutorado do país.
Weintraub poderia abrir o debate do financiamento dessas bolsas, de sua qualidade e dos critérios que as orientam. Também poderia reconhecer a gravidade da suspenção, organizando-se para minorar seus efeitos. Nessa discussão haverá espaço para vida inteligente. É sempre bom lembrar que nos seus 21 anos de duração, a ditadura demitiu, prendeu e exilou cientistas, mas também montou uma sólida base de estímulo à pesquisa. Poucos professores foram tão patrulhados pela esquerda em 1964 quanto o reitor Zeferino Vaz, da Universidade de Brasília. A partir de 1966 ele comandou a organização da Unicamp, que está hoje entre as melhores do país. O campus da universidade leva seu nome. Deve-se a Sérgio Buarque de Holanda a distinção, na política brasileira, entre conservadorismo e atraso. Talvez Zeferino fosse conservador, mas atrasado não era. Weintraub é atrasado, só.
Ele acha que existe um boi chamado Tatá. O Boitatá é uma enorme serpente de fogo que protege as matas. Ricardo Salles e Bolsonaro, por exemplo, sentiram o bafo do Boitatá.
*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
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