Gabriel Manzano | O Estado de S. Paulo / Caderno 2, 27/1/2020
Para sociólogo, o Brasil sofre com a falta de lideranças, esquerda está desorientada e a direita ‘capturou os deserdados da globalização’ e veio para ficar
O cientista político Aldo Fornazieri, diretor da Escola de Sociologia e Política, não economiza palavras para definir o quadro político-social do Brasil: “A falta de lideranças é uma coisa trágica”. E não só na política: “Faltam líderes de fato – daqueles que inspiram confiança e apontam uma direção à sociedade, como os definia Maquiavel no século 16 – nos meios empresariais, sindicais, industriais, educacionais, religiosos…”
E não é de hoje, acrescenta. “Episódios decisivos da história – independência, proclamação da República, Revolução de 30, o golpe de 1964, mesmo os 13 anos do PT, a rigor mantiveram o jogo e as elites conservadoras no poder. Em nenhum deles houve inovação e mudança”. Esse olhar deu origem a um livro, Liderança e Poder, que Fornazieri deve publicar ainda este ano, no qual fala do “declínio acentuado das lideranças” à luz dos ensinamentos de Maquiavel.
O País, ressalta o professor, “gira em círculos”. A esquerda “está desorientada, não tem projeto, ignora temas como meio ambiente e revolução tecnológica”. E a direita “capturou os deserdados da globalização e veio para ficar”, afirma nesta entrevista a Gabriel Manzano.
A seguir, os principais trechos da conversa.
• Como vê hoje o Brasil, com um ano de governo Bolsonaro, Lula solto e uma campanha eleitoral pela frente?
Vejo o País numa continuidade trágica, que faz parte da sua história. Ele gira em círculos, marcado por injustiças, incapaz de construir sua grandeza. E as responsabilidades cabem aos três grandes atores em campo – direita, centro e a esquerda.
• A começar pela direita, que balanço faz do atual governo?
Acho que ele frustrou expectativas. Do ponto de vista do crescimento, não conseguiu reduzir o desemprego. Não há até aqui sinais claros de retomada da economia ou políticas públicas que estimulem a pequena e a média empresa, grandes geradoras de emprego. A desigualdade aumenta: o IBGE nos diz que metade da população vive com algo em torno de 400 reais. No meio político, tivemos ataques sistemáticos à democracia – o mais recente levou à queda do secretário da Cultura, há dez dias. E convivemos com atos hostis à cultura, contestação de dados do INPE sobre desmatamento, descaso com o aquecimento global…
• E como vê os outros dois lados, centro e esquerda?
Vejo a centro-direita política dando as cartas no País, centrada na figura de Rodrigo Maia. Ele se projetou como grande articulador em nível nacional, fechando com a centro-esquerda na questão democrática e com o ministro Paulo Guedes na economia. É um centro que tem maioria e consegue barrar as bobagens do presidente nas medidas provisórias.
• E quanto à esquerda?
Vejo-a numa situação crítica. Ela entrou num defensionismo político lá por 2015, com as primeiras manifestações contra o impeachment de Dilma, e ali continua até hoje. O que me parece é que ela não achou o seu lugar no atual quadro político. Nas suas pautas, tentou mobilizar alguma coisa e fracassou. Um exemplo, a pauta da reforma da Previdência. Olhe as grandes manifestações em toda a França, pelo mesmo tema. E sabe quanta gente havia no protesto na Câmara, em Brasília, contra essa reforma? Vinte pessoas.
• Isso se deve a uma dispersão da esquerda, com Lula preso?
Em parte. Mas durante o impeachment de Dilma o Lula estava livre e não conseguiu fazer grande coisa em defesa dela. A esquerda perdeu a capacidade comunicatória. O PT foi se afastando das massas, quando no governo, e não criou raízes nas bases sociais. Essas bases estão nas periferias das grandes cidades, onde quem tem poder de persuasão, hoje, são as igrejas evangélicas.
• Igrejas que estão contra o PT.
Sim. E o PT tem um problema estrutural de mobilização agravado pelo antipetismo que cresceu com o mensalão e o impeachment. A campanha Lula Livre, por exemplo, só mobilizou a militância.
• Qual o peso real da liderança de Lula hoje?
Ele tem capacidade retórica e de aglutinação, mas não suficiente para promover uma virada de jogo. Não fará o governo recuar dos ataques às liberdades, à imprensa, à ciência, ao meio ambiente.
• Podem faltar lideranças no País mas a direita e boa parte do centro estão satisfeitas com Bolsonaro. Entendem que seu governo tem, sim, um projeto de País. Como vê isso?
Embora na política não haja quase nada definitivo, é importante considerar que a extrema-direita veio para ficar. Com o fim da Guerra Fria e o advento da globalização, ela se sentiu desbloqueada de constrangimentos – como a herança negativa do nazifascismo e das ditaduras militares em países periféricos. Então, lançou-se na disputa política e eleitoral com fisionomia própria. Mas não dá pra dizer que o governo Bolsonaro, no caso, tenha um projeto para o País. Pode ter elementos. Dou exemplos. Não se vê projeto de política externa. Há uma desconstrução da educação e da ciência. Não se veem políticas públicas para atacar a pobreza e a desigualdade. Mas com o eleitorado dividido em três fatias – centro, esquerda, direita –, é provável que Bolsonaro chegue competitivo em 2022 se a economia crescer.
• Você mencionou a desorientação da esquerda, mas isso não se limita ao Brasil. A da Europa está bem enfraquecida, aparentemente pela mesma razão – não dar respostas aos desafios da globalização e da alta tecnologia.
Sim, de modo geral as esquerdas se mostram desorientadas e sem projeto. Em primeiro lugar, acho que há um consenso entre estudiosos de que a democracia foi capturada pelo grande capital. Este não precisa mais do Estado para impor suas pautas. Num certo sentido, a esquerda virou uma “ala esquerda do centro liberal”.
• O que isso significa?
É o que vemos no Partido Trabalhista da Inglaterra, no Socialista da França, no PSOE da Espanha. O PT viveu processo parecido, assumindo o lado de lá do balcão e a visão dos palácios e gabinetes. Eu perguntaria: o PT mudou o Brasil, ou não, em seus 13 anos no poder? Eu diria que não. Houve melhorias nos programas sociais mas a estrutura social e econômica anterior permaneceu. Não vimos reformas profundas que eliminassem as desigualdades, grande desafio global dos nossos dias.
• Seria possível criar uma outra agenda nas condições de hoje?
Esse é o desafio. A direita tem a agenda dela. Onde é que a direita navega? Exatamente entre os deserdados da globalização, que são em número crescente. Em cada país ela assume um discurso nacionalista radical e lida com o medo.
• E esse fenômeno produziu líderes como Donald Trump nos EUA, Viktor Orbán na Hungria e agora Boris Johnson na Inglaterra. Como analisa esse novo quadro?
Nos países centrais, na Europa e nos EUA, essas lideranças aproveitam o temor das classes médias e pobres quanto a emprego, renda e chegada de imigrantes. Quem votou na candidata Marine Le Pen, de direita, na última eleição francesa foram os trabalhadores. O Trump também teve o apoio dos deserdados da globalização. Ou seja, a direita capturou o público que em tese seria da esquerda. Fez mais. Posicionou-se melhor no uso das redes sociais e recolocou o debate sobre valores – coisa que a esquerda deixou de lado, como fez também com o tema ambiental.
• Também não ofereceu respostas aos desafios sociais da da revolução tecnológica.
Não assumiu essa pauta no Brasil nem em lugar nenhum. Tematicamente, vejo na esquerda três sérias deficiências. Uma, essa alergia à questão ambiental. Outra, não abordar a revolução tecnológica – ela não tem receitas contra a escassez de empregos que virá com a revolução robótica. E a terceira, já mencionada, a desigualdade, hoje em nível planetário.
• Você deve publicar em breve um novo livro, Liderança e Poder. Pode falar a respeito?
É uma abordagem das teorias de Maquiavel sobre liderança, com um olhar a partir da política brasileira. Entendo que temos no Brasil um declínio bastante acentuado de líderes. O que é um líder? Alguém que inspire confiança e tenha capacidade de dar uma direção à sociedade – é algo diferente de fama ou celebridade. Aqui, até poderíamos mencionar o Lula, mas ele está na fase final de sua vida política, sem condições de disputar uma eleição, pela idade e até por razões judiciais. Acho essa falta de lideranças algo trágico para a sociedade – porque esta, sozinha, não é capaz de dar a si mesma uma direção.
• De que modo se enquadram, no modelo de seu livro, as novas lideranças da direita?
Primeiro, entendo que elas se enquadram, todas, no mesmo figurino: surgem com o fim da Guerra Fria, como citei anteriormente. O que Maquiavel nos ensina é o seguinte: em momentos de crise, abre-se campo para a ascensão de líderes que pregam a mudança. E a mudança, no atual cenário, é a democracia liberal sendo sequestrada pelos interesses do capital global.
• O que isso acarreta?
Nesse processo, os partidos mais afetados são os do centro liberal e da centro-esquerda. Líderes da direita perceberam essa situação crítica e se lançaram a campo propondo mudanças – conservadoras – e arrastaram trabalhadores e setores médios. Mas como a extrema-direita não é capaz de oferecer soluções para esses grupos que votam nela, no futuro próximo tende a haver um rearranjo político, que pode ser mais para o centro ou a centro-esquerda, dependendo das situações e das lideranças que se apresentarem.
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