- Folha de S. Paulo
Conforme a linguagem vai sendo desgastada, seu conteúdo deixa de importar
Não há nada de errado numa fala informal e espontânea. Quando Bolsonaro faz uma piada improvisada sobre o preço da carne, isso não suscita críticas. A piadinha aí é uma marca de autenticidade que o aproxima do cidadão comum. Mas e quando a fala é uma arma de ataque? Ou quando ela mente?
Deveríamos nos preocupar ou nos ater apenas aos atos do governo e ignorar as falas como um ruído mais ou menos inócuo?
Não raro, o presidente, seus ministros ou seus filhos acusam pessoas ou instituições ou ofendem valores importantes de nossa sociedade.
Alguns exemplos de acusações falsas: o presidente acusou Ricardo Galvão, então diretor do Inpe, de estar a serviço de ONGs. Acusou os ambientalistas de Alter do Chão de serem responsáveis por queimadas. Acusou um ex-assessor seu de participar do complô para matá-lo. O ministro da Educação acusou as universidades federais de cultivarem plantações extensivas de maconha. O ministro do Meio Ambiente insinuou que o Greenpeace estaria ligado ao vazamento de óleo no Nordeste.
A fala de um líder se presta a diversos fins: um deles é mover os sentimentos de quem os ouve, transmitindo medo ou esperança, ódio ou conciliação; agregar ou dividir. As paixões das massas guardam um enorme poder, e por isso também enormes perigos. O dia do Holocausto, lembrado nesta segunda-feira (27), nos mostra o poder de destruição de um povo tomado pelo medo paranoico e pelo ódio. Buscar levar as paixões do povo ao extremo é a marca de um líder que busca o poder tirânico.
A fala também revela os valores e o caráter de quem a profere. No passado, seria um motivo de vergonha para um presidente se ele xingasse uma deputada federal de gorda e fizesse desse humor seu motivo para desmerecê-la publicamente. Hoje, não. Essa conduta do presidente Bolsonaro é motivo de orgulho para seus seguidores, que celebram a cada “mitada”.
Por fim, a linguagem costumava ter uma outra finalidade: comunicar a verdade. Regra que, se sistematicamente quebrada, acabaria com a razão de ser da fala. Em outros tempos, ser pego numa mentira flagrante —especialmente se dirigida contra alguém— era um motivo de desonra.
Hoje em dia, não. Mente-se e acusa-se impunemente, sabendo que na cacofonia ininterrupta de tuítes e gritos tudo isso será esquecido. Ficamos anestesiados à verdade, que aliás é impossível de ser devidamente averiguada se cada um fala uma coisa diferente e quem mente não responde por seus atos.
Conforme a linguagem vai sendo desgastada, seu conteúdo deixa de importar. É tudo uma questão de ser pró ou contra o governo, numa luta de paixões cada vez mais violentas porque incapaz de ser resolvida com palavras, isto é, com a razão. A dualidade radical e inegociável entre amigo e inimigo, que, num momento de crise terminal ou estado de exceção é realmente o fator determinante da política, se transforma no estado de espírito normal do cotidiano.
As tais “instituições” que garantem a democracia existem apenas em nossas mentes; existem na medida em que pessoas limitam algumas ações em nome do respeito a certas regras que, mesmo que não as beneficiem naquele momento, são importantes para o funcionamento justo do sistema.
Se, a custa de calúnias e teorias da conspiração, uma parcela relevante da população passar a odiá-las, a democracia estará em risco. Neste momento, ela resiste. Mas será possível cravar que o trabalho presidencial de corroê-la gradativamente por meio das palavras não terá efeito nenhum? Eu não iria tão longe.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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