A 'noiva' da Cultura – Editorial | Folha de S. Paulo
Em área dominada pelo caos, escolha de Regina Duarte pode trazer previsibilidade
Desde a campanha eleitoral de 2018, os apoiadores de Jair Bolsonaro elegeram a cultura como um campo de batalha. Na visão de ideólogos ligados ao atual presidente, tratava-se de território dominado pela doutrinação de esquerda, uma espécie de grande trincheira internacional de ideias derivadas do marxismo a ser combatida.
Paralelamente, a militância do então candidato empenhava-se em ataques nas redes sociais com o intuito de desmoralizar artistas consagrados, que se aproveitariam de “mamatas”, como a Lei Rouanet, para enriquecer e —em alguns casos— entregar-se à devassidão.
Eleito, Bolsonaro passou da teoria à prática e desmontou o que sempre viu como uma estrutura a serviço de projetos esquerdistas. As ações do presidente, em nada familiarizado com o setor, revelaram-se caóticas e ineficazes. Em um ano, a secretaria que substituiu a antiga pasta foi alocada em dois ministérios e teve três titulares.
O último deles, como se sabe, foi demitido sob intensas pressões sobre o presidente depois de ter estrelado um vídeo no qual parodiava Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Adolf Hitler.
O prosseguimento dessa dinâmica de turbulências e irracionalidades é insustentável. Para interrompê-la, no que pode se revelar uma bem-vinda tentativa de apaziguar o setor, anuncia-se o “noivado” da atriz Regina Duarte com o governo.
Como declarou a empresária do setor cultural Paula Lavigne, alvo de ataques do bolsonarismo, a nomeação se prestaria a um processo de “redução de danos”.
Conhecida como simpatizante da direita, a atriz não se filia entre os extremistas. Tem longa e reconhecida experiência no mundo da cultura, esteve com colegas em embates contra a censura nos tempos da ditadura e parece reunir condições de restabelecer um padrão mínimo de previsibilidade.
Não é demais insistir que a cultura, além de relevante em sua dimensão simbólica, também é importante do ponto de vista econômico. Estima-se com base na Pnad Contínua, do IBGE, que 7,4% dos empregos do país (cerca de 6,8 milhões) estão vinculados ao universo da economia criativa, que abarca atividades que vão das artes cênicas ao design, passando, entre outras, por televisão, música e moda.
Não se sabe se o noivado de Regina Duarte se transformará em casamento, mas há uma chance de que a atriz, se assumir, contribua para apaziguar o setor.
Atriz na área de cultura tensiona bolsonarismo – Editorial | O Globo
Nomeação de Regina Duarte, a melhor alternativa, não agrada aos extremistas que controlam o setor
O convite à atriz Regina Duarte para substituir Roberto Alvim, o plagiador do ideólogo nazista Joseph Goebbels, na Secretaria de Cultura, é inteligente. Atriz experiente e respeitada no seu meio, Regina Duarte não defende teses nazistas. Pode ter uma posição mais conservadora na política, assim como há artistas mais à esquerda. O que importa é a qualificação para o cargo, e ela a tem, pela experiência profissional acumulada no teatro e na teledramaturgia.
Mas não será simples para Regina Duarte, se aceitar o convite, o que deve confirmar hoje. Nem Bolsonaro deve pensar que tudo na cultura acontecerá dentro do imaginado pela extrema direita a que se alia e à qual entregou a área. Já circularam nas redes comentários enviesados, indícios de que a milícia digital do bolsonarismo, ou parte dela, deverá ser mobilizada em ataques à nova secretária.
A guinada de Bolsonaro para o centro no convite à atriz deve gerar movimentações no subterrâneo bolsonarista. Afinal, não se pode imaginar que a provável nova secretária, sem militância extremista, com raízes na vida artística, possa concordar com os “filtros” defendidos por Bolsonaro na avaliação de projetos cinematográficos a serem apoiados por recursos públicos. Mais um eufemismo para designar censura.
Está registrado que em agosto de 1975, ainda na ditadura militar, a atriz e outros 23 profissionais da TV Globo pediram audiência ao presidente Ernesto Geisel para entregar-lhe um texto de reclamação contra a censura imposta à novela “Roque Santeiro”, de Dias Gomes, proibida de estrear. Regina Duarte faria parte do elenco da novela na versão que foi ao ar em 1985.
Não bastará apenas substituir Alvim e seu pensamento, mas também refazer, por exemplo, as bases do Prêmio Nacional das Artes, em cujo anúncio, gravado em vídeo, o ex-secretário apareceu fantasiado de estética nazista — o cabelo, o terno, a mesa, o gestual — para anunciar o conceito da premiação. Nesta fala, Alvim plagiou Goebbels. O prêmio demonstra como o projeto bolsonarista de apoio às artes é, ou era, dirigista, intervencionista. Nada diferente do que em qualquer Estado autoritário. Se a sociedade e instituições rejeitaram este mesmo desvio na era lulopetista, inclusive com o apoio de Regina Duarte, faz o mesmo agora.
Bolsonaro reagirá? Ele e seu grupo recuarão na “guerra cultural”, em que é essencial montar aparelhos nos órgãos do Estado, em especial na Secretaria de Cultura?
Antes de iniciar seu plano de trabalho propriamente dito, Regina Duarte precisará substituir nomeados na Funarte, na Casa de Rui Barbosa, na Fundação Palmares. Sem isso, nada poderá ser feito, diante de uma equipe notabilizada pelo exotismo de suas teses: a terra é plana, rock causa aborto, a escravidão foi boa para os descendentes de escravos etc.
A reação de Bolsonaro indicará maior ou menor flexibilidade do seu governo em fazer concessões. Na economia, recuou em certos aspectos da reforma da Previdência, e resistiu em outros, como na defesa de vantagens de corporações de policiais. A melhor alternativa para a cultura seria equiparar Regina Duarte a Paulo Guedes.
Vingança como política – Editorial | O Estado de S. Paulo
É dado como certo no Congresso que duas medidas provisórias (MPs) consideradas especialmente importantes pelo presidente Jair Bolsonaro não serão analisadas e perderão a validade sem votação. Uma delas revoga o monopólio de entidades estudantis para a emissão da carteirinha que dá direito à meia-entrada para estudantes. A outra dispensa a administração pública de publicar em jornais diários de grande circulação editais de licitação e tomada de preços, concursos e leilões.
Já se tornou rotineiro o arquivamento de medidas provisórias editadas por Bolsonaro, por irregularidades ou porque o governo não se empenhou em aprová-las. No caso das duas medidas em questão, contudo, a reação do Congresso é uma forma de deixar claro a Bolsonaro que a caneta presidencial não pode ser usada para prejudicar aqueles que o governo considera seus inimigos. Pois é justamente de vingança, pura e simples, que se trata as tais medidas provisórias.
A chamada “MP da Liberdade Estudantil”, por exemplo, foi considerada pelo próprio governo como um instrumento para prejudicar a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), ao retirar-lhes o monopólio da emissão de carteirinhas de estudantes, principal fonte de renda dessas entidades. Esse monopólio é totalmente absurdo e ilegal, mas, a julgar pelo discurso do presidente, o objetivo primordial de sua MP não é dar liberdade para que o estudante escolha de que maneira vai obter sua carteirinha – até porque a MP estabelece que é o governo quem passará a emiti-la –, e sim arruinar a UNE e a Ubes.
“Essa lei de hoje, apesar de ser uma bomba, é muito bem-vinda, vem do coração”, disse o presidente ao assinar a medida. “Vai evitar que certas pessoas, em nossas universidades, promovam o socialismo. Socialismo esse que não deu certo em lugar nenhum do mundo, e devemos nos afastar deles”, declarou Bolsonaro, em referência ao fato de que as entidades estudantis são ligadas a partidos de esquerda, como o PCdoB. Em outra ocasião, disse que, graças à MP, “vai faltar dinheiro ao PCdoB, vão ter que arranjar dinheiro em outro lugar”.
O presidente deixa claro que sua intenção é sufocar partidos de esquerda e seus satélites no movimento estudantil. Se estivesse realmente interessado em promover o interesse público a respeito desse tema, teria trabalhado no sentido de revogar a própria existência da Lei da Meia-Entrada (Lei 12.933/2013), que é injusta por dividir os brasileiros em duas classes, os que têm e os que não têm direito de pagar menos em eventos culturais e esportivos. Bolsonaro preferiu nem tocar nesse assunto. Escolheu usar a questão da carteirinha de estudante como instrumento para atacar desafetos. Nenhuma MP elaborada com esse evidente espírito de desforra passará na Câmara, segundo avisam os parlamentares.
Pelos mesmos motivos, dificilmente prosperará a medida provisória que dispensa a publicação de editais da administração pública em jornais – cujos efeitos, aliás, foram suspensos por força de liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. É a segunda tentativa de Bolsonaro de prejudicar economicamente a imprensa, que ataca dia e noite. A primeira, a MP que acabava com a obrigação de empresas de capital aberto de publicar seus balanços em jornais, foi arquivada sem votação pelo Congresso. Não havia outra atitude a tomar, especialmente depois que o presidente declarou, com todas as letras, que se tratava de uma “retribuição” pelo tratamento supostamente hostil que recebe da imprensa.
Ao rejeitar ou deixar caducar medidas provisórias que não apenas carecem dos requisitos legais de urgência e relevância, como também, e principalmente, são destinadas apenas a lesar aqueles que o presidente escolheu como seus antagonistas – reais e imaginários –, o Congresso cumpre rigorosamente seu papel de freio dos ímpetos cesaristas de Bolsonaro, que desde sempre confunde seus desejos pessoais com a “vontade do povo” supostamente manifestada nas urnas com sua eleição. Que assim continue, para o bem da democracia.
Efeitos das mudança nas regras para compras governamentais – Editorial | Valor Econômico
Pesquisa do Ipea mostra que o mercado de compras governamentais brasileiro representa 12,5% do PIB do país
A decisão do ministro da Economia, Paulo Guedes, confirmada na manhã de ontem, de abrir o mercado brasileiro às empresas estrangeiras em licitações públicas deverá ter implicações macro e microeconômicas importantes a curto e médio prazos. A informação foi antecipada pelo repórter Daniel Rittner, na edição de ontem do Valor.
Ontem, ao sair de um encontro na reunião anual do Fórum Econômico Mundial, em Davos, o ministro informou que pedirá formalmente a adesão do país ao Acordo de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio (OMC). Segundo ele, tornando-se voluntariamente um signatário do tratado, o país busca incorporar melhores práticas e fazer um “ataque frontal” à corrupção. O acordo, conhecido pela sigla em inglês GPA (Government Procurement Agreement), dá tratamento isonômico a empresas nacionais e estrangeiras em aquisições do setor público.
Questionado se a adesão não impede o governo de promover políticas industriais, com margens de preferência a empresas brasileiras nas compras governamentais, o ministro respondeu que o Brasil não pode ser “uma fábrica de bilionários à custa da exploração dos consumidores”.
Não resta dúvida de que esse projeto, levado adiante, interromperá uma tendência muito forte dos governos brasileiros nas últimas décadas, a de colocar em prática políticas industriais. O governo Dilma Rousseff, por exemplo, tinha como um dos pilares na área econômica a concessão de margem de preferência de até 25% a produtos nacionais em licitações nas áreas de defesa, medicamentos, maquinário e até têxteis, como uniformes fornecidos às Forças Armadas. Uma empresa nacional tinha vantagem sobre outra estrangeira e ganhava a concorrência mesmo oferecendo um preço maior.
O acordo internacional garante o acesso dos signatários a um mercado estimado em US$ 1,7 trilhão por ano. Seus integrantes ficam obrigados a dar isonomia de tratamento entre empresas nacionais e estrangeiras que entram em contratações públicas em bens, serviços e infraestrutura. Em compensação, companhias dos países-membros devem receber benefício semelhante nos mercados internacionais.
O que, quando e como o Brasil abrirá suas licitações ainda será definido na negociação técnica em Genebra sobre a entrada no GPA. Trata-se de um acordo plurilateral, de adesão voluntária, que existe desde 1982 e foi revisado em 2014. Estados Unidos, China, Japão, Austrália e Canadá estão entre os signatários. São 28 países ao todo - entre os quais poucos emergentes.
Estudo de dois pesquisadores do Ipea, Cássio Garcia Ribeiro e Edmundo Inácio Júnior, de maio de 2019, trata detalhada e analiticamente desse mercado, entendido por eles como “as aquisições de bens e serviços realizadas pelos governos com vistas a permitir o funcionamento da máquina pública e o cumprimento das funções do Estado. Atrelada a tais aquisições, emerge a chamada política de compras governamentais”.
O trabalho destaca importância da política de compras governamentais. Para a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2015, esse mercado representava cerca de 13% do produto interno bruto (PIB). “Além do grande peso do mercado de compras governamentais sobre o PIB dos países, vale ressaltar, com base na revisão da literatura, o importante papel que a política de compras governamentais pode cumprir do ponto de vista do estímulo ao desenvolvimento (econômico, social, industrial, tecnológico, ambiental etc.) de um país”, notam os economistas do Ipea.
A pesquisa realizada por eles mostra que o mercado de compras governamentais brasileiro representa 12,5% do PIB do país (média para 2006 a 2016). Além disso, os dados apontam que as compras da União representaram, em média, cerca de 50% do mercado de compras governamentais brasileiro durante o período, e contam com participação importante da Petrobras.
Ou seja, o levantamento do Ipea evidencia que a mudança de política em relação às compras governamentais tem poder para alterar de forma profunda práticas e atuações de centenas, provavelmente milhares, de empresas em todo o país e no exterior, já que supõe-se que haverá grande interesse de companhias internacionais pelo mercado brasileiro. Espera-se também críticas do empresariado nacional.
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