-Valor Econômico
Restrições já afetam 52% das vendas do Brasil ao país vizinho
O governo Alberto Fernández deu as primeiras sinalizações de uma abordagem mais protecionista do comércio exterior na Argentina. A política de abertura quase irrestrita do ex-presidente Mauricio Macri cede espaço à tentativa de preservar setores da indústria considerados estratégicos, seja pela quantidade de empregos que geram, seja pelo valor dos insumos importados que usam na produção, com potencial de estrago nas contas externas.
Aos fatos: o número de produtos submetidos ao regime de licenças não automáticas de importação subiu de 847 para 1.126 linhas tarifárias. A mudança saiu no “Boletim Oficial” de 9 de janeiro e parece atingir uma esfera relativamente limitada de bens.
O efeito concreto, no entanto, é bem mais amplo do que sugere esse olhar inicial. A consultoria Ecolatina, uma das mais respeitadas de Buenos Aires, nota que, em valores, o aumento é muito maior. Antes, o mecanismo alcançava US$ 8 bilhões em compras no exterior (contando o fluxo entre janeiro e novembro de 2019). Agora será aplicado sobre importações que somaram US$ 14 bilhões no mesmo período - uma variação de 75%.
Há uma série de detalhes preocupantes. A validade das licenças não automáticas, uma vez concedidas pelo governo, caiu de 180 para 90 dias. Se o frete de um produto demora ou ele fica retido no desembaraço aduaneiro, há chances enormes de perder o prazo e começar todo o procedimento burocrático do zero. Havia 7% de tolerância - em valor e em peso - entre a licença dada e o efetivamente importado. A diferença diminuiu para 5%. Para complicar: pedidos de informação e de documentos, que antes eram por meio eletrônico e tinham dez dias úteis como limite para resposta, deixaram de circular por meio digital e não têm mais prazo.
“Pelo menos em seu desenho inicial”, diz a consultoria Ecolatina, “a nova política comercial se situa em um ponto intermediário entre as estratégias pendulares de fechamento absoluto e abertura total dos esquemas recentes.” Traduzindo: o governo Cristina Kirchner (2007-2015) havia adotado um regime ainda pior, a Declaração Jurada
Antecipada de Importação (DJAI), e colocava empecilhos ao avanço de negociações de acordos de livre-comércio, como a arrastada tratativa Mercosul-União Europeia. Macri (2015-2019) extinguiu a DJAI com menos de mês na Casa Rosada e pressionou o Brasil até onde pôde para acelerar tratados comerciais.
As licenças não automáticas são um mecanismo permitido pela Organização Mundial do Comércio (OMC), desde que o prazo de liberação não ultrapasse 60 dias. Teme-se, porém, que elas rapidamente se transformem em uma barreira concreta às exportações para a Argentina. No início da década, diante da escassez de dólares e da falta de disposição do mercado internacional em financiar o déficit externo do país vizinho, a aprovação das licenças demorava até 180 dias. Chega uma hora em que as empresas são vencidas pelo cansaço e param de exportar.
E o Brasil com isso? Dados compilados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) indicam que a parcela das exportações brasileiras atingidas pelas medidas restritivas aumentou de 18% para 52%. É um impacto muito maior do que para a UE (34% das exportações), a China (31%), o Chile (22%) e os Estados Unidos (20%). Como as licenças não automáticas afetaram também automóveis e autopeças, que correspondem ao grosso do comércio bilateral, o reflexo foi desproporcional para o Brasil.
Mas não se trata só de carros: fabricantes de ferro e aço, borracha, produtos químicos, cosméticos, sabão e cera, plásticos, produtores de cacau, de café e chá estão entre os atingidos. A indústria de calçados, que vendeu 10 milhões de pares à Argentina no ano passado, acendeu a luz amarela.
“Nós entendemos a situação econômica na Argentina, que está com problemas de divisas, por isso vamos acompanhar continuamente os efeitos na indústria brasileira. A crise econômica não pode ser motivo para barreiras que vão contra o espírito do Mercosul”, afirma o diretor de desenvolvimento industrial da CNI, Carlos Abijaodi.
É provavelmente a esse novo ambiente de restrições que o secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais, Marcos Troyjo, se referiu ao apontar “sinais ruins” vindos do governo argentino em matéria econômica e comercial.
Em Davos, há duas semanas, o ministro Paulo Guedes teve uma conversa rápida e cordial com Guillermo Nielsen, um dos economistas mais influentes do atual governo e presidente da estatal petrolífera YPF, escolhido pelo próprio Fernández como seu enviado especial ao Fórum Econômico Mundial. Na correria do resort suíço, não foi possível aprofundar nada. A discussão para valer ficou para o dia 12, quarta-feira da semana que vem, quando o chanceler Felipe Solá vem ao Brasil encontrar-se com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. O secretário de Assuntos Estratégicos, Gustavo Beliz, e o futuro embaixador da Argentina em Brasília, Daniel Scioli, o acompanham na visita.
Beliz é candidato à eleição, neste ano, para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Já recebeu o apoio do México. O Brasil avalia, reservadamente, se postula ou não a vaga - Carlos Da Costa e Maria Silvia Bastos Marques são nomes cogitados. Quem tiver a bênção de Washington, dono de 30% dos votos, deverá levar a vaga.
Uma eventual disputa pelo comando do BID seria a menor das divergências para resolver. Fernández, que almoça amanhã com o francês Emmanuel Macron em Paris, apoiará a ratificação do tratado Mercosul- UE ou proporá uma revisão dos termos negociados? A Argentina aceita seguir o Brasil e reduzir a Tarifa Externa Comum? Haverá empenho da Casa Rosada no aval legislativo ao acordo de facilitação de comércio, fechado agora em dezembro, que elimina a cobrança de taxas alfandegárias entre os sócios do bloco e pode gerar economia de US$ 500 milhões anuais aos exportadores brasileiros?
Em última instância, cabe a pergunta: quem manda, de fato, na Argentina: Fernández ou Cristina? Um empresário argentino com trânsito no governo respondia, em Davos, da seguinte forma: “Fernández, sem dúvida, toma 99% das decisões. Cristina só decide o 1% mais relevante”. Será mesmo?
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